Museu mostra quadros espoliados de judeus. Por Rui Martins
Museu de Arte de Berna expõe quadros de judeus espoliados pelos nazistas
A importância da atual exposição do Museu de Arte de Berna é também política, didática, histórica além de artística, partindo de um controvertido legado de quadros, recebidos de um diretor de museu, negociante de arte, colecionador e organizador de exposições alemão, vindo da época do nazismo. Isso porque nos mostra como o poder político pode ditar normas artísticas e impedir a livre manifestação e a evolução natural das artes.
Durante o nazismo alemão se cristalizou o conceito de arte degenerada e isso envolvia a literatura, a pintura e a música. Tudo quanto fugia do modelo clássico e naturalista da arte alemã, e isso poderia ser por seu pacifismo e pessimismo, era condenado, considerado decadente, e devia ser destruído, pondo-se assim fim à diversidade artística. A perseguição à “arte degenerada” incluía seus possuidores e também os artistas judeus. Enquanto os nazistas depuravam seus museus e galerias da chamada “arte degenerada”, ela florescia principalmente na França, para ser reprimida durante a invasão pelos nazistas alemães.
É esse o contexto da exposição Gurlitt, um Balanço. Gurlitt é o nome de uma tradicional família de colecionadores e expositores de arte alemães. Quem nos interessa é Cornelius Gurlitt, colecionador de quadros de arte, cujo destino mudou em setembro de 2010, aos 77 anos, quando passou por um simples controle de alfândega na fronteira alemã, ao voltar de trem de Zurique para Munique. Ao abrirem sua sacola, encontraram um pacote em dinheiro vivo, no valor de 9 mil euros, apreendidos por não haver um documento de origem, suspeitando-se de fraude fiscal.
Cerca de um ano depois, a polícia financeira fez uma busca num apartamento alugado por Cornelius em Munique e ali se depararam com muitos caixotes de latas de conserva que, na verdade, escondiam pinturas de arte bem guardadas e em perfeito estado de conservação. No total, eram 1406 quadros e desenhos sem moldura, salvados da época nazista pelo pai de Cornelius, o diretor de museu Hildebrand Gurlitt. Seus autores eram prestigiosos pintores da “arte degenerada” como Renoir, Matisse, Picasso, Paul Klee, Kokoschka, Kandinsky, Max Beckmann e outros.
A dúvida sobre a origem desses quadros surgiu na mesma época, em 2010, quando Cornelius Gurlitt vendia em Colônia, na Alemanha, O Domador, uma pintura expressionista de Max Beckmann, que deixara a Alemanha em 1937, para viver em Paris e depois em Amsterdã, embora cidades ocupadas pelos nazistas. Em 1947, Beckmann emigrou para os Estados Unidos onde foi professor na Universidade de Saint Louis, morrendo três anos depois em Nova Iorque.
Ora, quem se encarregara na época da venda do quadro O Domador era Alfred Flechtheim, judeu dono de uma galeria que fugira da Alemanha em 1933. O fato do quadro ter ficado com Hildebrand Gurlitt levantou a suspeita de ter havido nesse caso e muitos outros um tipo de espoliação de arte por compra a bom preço de judeus forçados a fugir ou já sem recursos.
Entretanto, Cornelius defendia a ideia de que seu pai queria salvar os quadros de uma destruição ou de ficarem com os russos no fim da guerra.
Em favor de Hildebrand Gurlitt existiam cartas de Beckmann falando do seu apoio. Mas outros quadros eram de obras espoliadas pelos nazistas entre 1940-41. Essa questão ainda estava em debate, quando Cornelius morreu em Munique aos 81 anos, legando em doação todos seus quadros, mais de 1.600, por testamento ao Museu de Arte de Berna.
A partir da aceitação do precioso legado, o Kunstmuseum decidiu fazer uma minuciosa pesquisa sobre os quadros herdados. Há quatro anos, numa exposição precedente, sob o título As Espoliações Nazistas e suas Consequências sobre quadros cuja origem permaneciam duvidosas, houve uma primeira avaliação. Nela, se fez um primeiro balanço da pilhagem de bens de judeus pelos nazistas dentro do contexto histórico e do papel desempenhado na época por museus e negociantes de arte.
Concluiu-se pela implicação de Hildebrand Gurlitt nas vendas forçadas e no comércio de obras de “arte degenerada”, provenientes de espoliações e confiscações dentro de museus. Assim, entre algumas obras legadas havia uma relação direta com a vida de pessoas perseguidas, principalmente artistas, colecionadores e negociantes de arte judeus. Previa-se a restituição de obras espoliadas, o que de fato ocorreu nestes últimos anos.
No decurso das investigações, apurou-se que, em 1937, houve um movimento nazista para retirar e confiscar de todos os museus alemães as obras de arte moderna consideradas “degeneradas”. No total foram mais de vinte mil obras expressionistas, abstratas, dadás, incluindo também obras criadas por artistas de esquerda e judeus, retiradas dos museus alemães. Uma parte dessas obras foram vendidas, fora da Alemanha por Hildebrand, para financiar a guerra alemã contra os Aliados.
Ao fim da guerra, em 1945, oficiais norteamericanos encarregados da proteção de obras de arte confiscaram a coleção de Hildebrand, que, não tendo sido condenado, as recebeu de volta em 1950, e retornou às suas atividades de organizador de exposições de arte na Alemanha, até 1956, quando morreu vítima de um acidente de trânsito, ficando sua coleção com o filho Cornelius.
A exposição Gurlitt – Um Balanço estará aberta até 15 de janeiro 2023, no Kunstmuseum Bern. Interessados podem ter acesso pelo link www.gurlitt.kunstmuseunbern.ch
Essa provação vivida pelos artistas alemães durante o nazismo, deve servir como alerta contra toda tentativa de grupos políticos ou religiosos decididos a condenar e impedir seja qual for o tipo de diversidade cultural, seja pelo corte de verbas, pelo fechamento de escolas ou perseguição dos artistas.
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Rui Martins – é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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