Concerto para clarineta. Por Antonio Contente
… Ao me aproximar, no deserto não só de pessoas, mas, até, de fantasmas, escutei, vindo da biboca, o “Concerto para Clarineta”, de Mozart. Está claro que parei, pálido de espanto como no velho soneto bilaqueano…
De vez em quando, se chove à noite aqui em Campinas, chuva de Primavera como a que cai agora, mítica e de lentos espantos, lembro-me de Lars Bjenikold. Imagine uma pequena cidade perdida no litoral atlântico do Pará, onde a estação das águas provoca dias de umidade tão intensa que as gotas de vapor chegam a escorrer em nossa própria alma. Pois ali eu tinha uma casinha, franciscana e simpática, há tempos. Por que não em Ubatuba ou Ilha Bela, hão de perguntar os mais afoitos, uma vez que moro no interior de São Paulo.
Respondo: é que naquele pedaço da Amazônia Profunda, ao contrário dos invernos chuvosos, os verões são de uma luminosidade estonteante e o céu, escandalosamente azul, só é de vez em quando fendido pelos enormes flocos (de algodão) de nuvens alvíssimas. E a abóbada noturna se apresenta crivada de tantas estrelas, tão clara, que, em certas ocasiões, a silhueta da Via Láctea se desenha. É o que muitos poetas já viram e continuam a ver, para eternizar em versos. Sim, mas eu queria contar que era Inverno, a estação das águas, e saí, uma noite, munido de exíguo guarda-chuva, em busca da birosca de um cara conhecido como Ceará, no fim da na época ainda remota praia do Maçarico, em Salinópolis, para curtir uma sopinha de caranguejos que a mulher do bom homem preparava com engenho e arte de fazer inveja a Brillat Savarin. Ao me aproximar, no deserto não só de pessoas, mas, até, de fantasmas, escutei, vindo da biboca, o “Concerto para Clarineta”, de Mozart. Está claro que parei, pálido de espanto como no velho soneto bilaqueano.
Assim é que conheci Lars Bjenikold, o ornitólogo dinamarquês. Ele chegara ao litoral paraense alguns dias antes de mim e, à noitinha, ia para a barraca do Ceará, sempre deserta então, comer peixe lendo um livro posto ao lado do prato. De quebra levava uma fita com o Concerto que eu ouvira; pedia pro barraqueiro colocar no sonzinho “três em um” capenga, porém suficiente.
O gringo se encontrava na região fazendo pesquisas sobre certo pássaro, porém, não um pássaro qualquer. Buscava, para fotografar e gravar o canto, um tipo de sabiá que só existia nos mangues daquela área, ou alguns outros que se estenderiam até o litoral do Maranhão. Na terceira noite de papo, em que nos entendíamos através de um inglês bastante bom entremeado com um portunhol razoavelmente medonho, o cientista me convidou:
— Venha conosco, já localizamos o passarinho.
O “conosco”, constatei no dia seguinte, era Ingrid, a esposa sueca de Lars. Loura, lindíssima, olhos de um azul que não roubara do céu; mas sim, este, sua cor no olhar dela buscara, para se tornar infinito. Tinha corpo de negra calipígia, e, nas pesquisas do marido atuava como fotógrafa. Incorporei-me ao duo como uma espécie de ajudante para carregar tralhas. Com o casal passei a me enfiar em mangues e caminhos tortuosos nas manhãs tão derretidas sob chuvas que acabei perguntando a Lars qual a razão de não ter optado pelo Verão, a estação mais seca.
— É que no Inverno – explicou – os sabiás se tornam visíveis. Acasalam então, e praticamente só nesta época cantam.
Quando Lars e Ingrid partiram, após uns dois meses de convivência comigo, pois os retirei do hotel e os coloquei em minha casa, senti falta deles. Principalmente dos papos que tinham se tornado a três. Chateado com a ausência, voltei para Campinas antes da data que marcara.
Mas foi no Verão amazônico, seis meses depois, que, ao chegar à minha casinha no então ainda não tão barulhento litoral, recebi, do caseiro, um pacote. Ao verificar, pelos selos, que vinha de Estocolmo, na Suécia, abri com avidez. Dei então com um belo livro, publicado anos antes por Lars Bjenilkold sob o patrocínio da Real Academia da Dinamarca, intitulado “Pássaros da Nicarágua”. Que ficou comigo durante algum tempo, porém, ao final, teve melhor destino: o doei à bela professora campineira Raquel Maria de Almeida Prado, infelizmente já falecida, que, na época, organizava, junto com o escritor Darcy Ribeiro, a Biblioteca do Memorial da América Latina, em São Paulo.
Ah, sim, algum volume sobre os tais sabiás que ajudei a procurar naquela parte do litoral atlântico do Pará, nunca recebi. Contudo, junto com o que chegou no Verão tão especial, encontrei também bilhete de Ingrid e pacotinho contendo uma fita cassete. Era o “Concerto para Clarineta”. Que escutava, faz pouco, nesta campineira noite de chuva com um razoável friozinho de Primavera no qual entraria, com certa boa vontade, até lareira de fogo brando. A citada estação, pelo que se sabe, pode até não ser tão intensa por aqui quanto no Hemisfério Norte. Mas as lindas lembranças que ela faz emergir, são.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Parabéns? Você é um escultor de memórias!
Acredito que, caso haja de fato um céu, deverá ser um local onde poderemos reviver as nossas melhores memórias, sempre que quisermos. E escolhê-las, como disse Cecília Meireles, em seu livro Escolha o seu Sonho! 😃👏👏👏
Parabéns, pelas belas imagens que faz evocar e fantasiar. Grande artífice da palavra.