Neblinas sobre o rio. Por Antonio Contente
… A neblina fala muito particularmente da vida porque, em todas as manhãs, espera a morte para que se faça a luz. Que vem com o sol, com os cantos dos pássaros, com as cores que rebrotam e fazem o opaco sumir. Os deuses, na sua sabedoria, fizeram as manhãs para a celebração da vida, para a ressurreição, do mesmo jeito que fizeram o anoitecer para que não esqueçamos da nossa finitude…
O melhor, dos barcos à vela, é que a bordo deles pode-se respirar o silêncio. A embarcação desliza mansa, criando seu rastro de espumas e você escuta a paz como se descesse do céu uma intimidade, uma oferenda de alento. Estamos navegando há dias pelo rio, o Tocantins, largo, enorme, mar neste trecho entre Mocajuba e Cametá, no Pará, não longe da foz. Dizem, como o famoso escritor paraense Salomão Laredo, autor de romances memoráveis, que ele é o curso dágua mais bonito do mundo; para quem está sobre e sob a sua aura, é impossível desmentir isso. A noção de beleza, afinal, é uma percepção muito fina. Como a pele dos lábios, ou a tênue ilusão dos sentimentos.
Quinta-feira, amanhece. Saindo do meu pequeno catre, vejo a superfície coberta de neblinas. Neblinas sim, como as que você topa nas estradas do Sul e Sudeste nos meses de inverno, mas que, aqui, são diferentes em tudo. Exatamente porque, sobre o rio, ela é absolutamente um manto; tapete de uns poucos metros de altura sobre o espelho das águas, algodão do infinito pronto para a ceifa, esconderijo de mitos prontos para o encantamento.
Neblina acima da superfície de um rio como o Tocantins, eu vos digo, é algo muito sério. Até porque dela, no nosso olhar ao redor, emerge a mata de copas perfeitas no despontar da quase manhã. Ah, as quase manhãs são tão importantes como os quase amores, pela carga de ânsia atenuada; o que as torna simplesmente doces.
O amanhecer sobre a selva e suas águas é um rito de repetição litúrgica do próprio princípio da vida. Ali está recomeçando o que já foi começado e recomeçado; contudo, por mágica, é como se nunca tivesse existido. A neblina fala muito particularmente da vida porque, em todas as manhãs, espera a morte para que se faça a luz. Que vem com o sol, com os cantos dos pássaros, com as cores que rebrotam e fazem o opaco sumir. Os deuses, na sua sabedoria, fizeram as manhãs para a celebração da vida, para a ressurreição, do mesmo jeito que fizeram o anoitecer para que não esqueçamos da nossa finitude.
Não há vento, o barco está, literalmente, parado. A névoa se esgarça e, de repente, de dentro dela emergem duas garças. Acho que nasceram ali, naquele exato momento, dádiva à minha santa perplexidade. Maior ainda ao perceber que as aves voam na direção em que o céu começa a ficar vermelho. Da margem, vem um canto de pássaro. Mais do que saudação à luz, é a certeza de que o sol não tarda. E a neblina, então estática, começa a se mover. Enreda-se em desenhos de formas sutis, mãos em aceno de adeus, rostos femininos de traços finos, cabelos em cascatas indesmentíveis, trazendo a sensação de que pairamos num pedaço de céu. Sim, sim, vagamos sobre nuvens, cortamos o infinito com a simplicidade de um gesto; e a luminosidade total, na repetição incansável do milagre, se faz.
O primeiro raio de sol vem como uma flecha rasgando o tempo. Farrapos de anos-luz, mensagem certa da claridade síntese, deflagrar de certezas nas sístoles e diástoles do nosso pulsar inalienável. E ao primeiro impacto a neblina, até então alva, se tinge de laranja, de vermelho, e se desfaz. Mas antes passou pôr ser hibisco, foi rosa alvíssima em jardins nunca ceifados, foi soluço de alegria ante o abraço daquilo tão simples, mas tão belo.
E na primeira fenda que o sol abriu no grande manto, cintila a superfície do rio. Na leve correnteza da maré acariciada pôr suspirante brisa, meigos reflexos de ouro e prata. Mais do que isso, diamantes e esmeraldas, topázios e rubis de lampejos macios nas cores tão vivas. O rio, o meu rio onde nasci, o nosso rio, vai sendo mais uma vez descoberto. As lâminas da luz do sol fracionam o branco, e, na margem, o verde fica mais verde, tanto que posso ver, nos primeiros galhos que se desenham, as orquídeas alvas em que a Amazônia é tão fértil, tão pródiga. Talvez nesgas de neblinas que se depositam ali para, antes do amanhecer, virem se banhar no líquido caminho, tão bom neste momento porque é um caminho sem a necessidade de destino. Por São Judas Tadeu e por Santa Rita do Passa Quatro, poucas coisas há, na vida, tão boas como não ter destino. Ser simples passageiro de névoas e orquídeas que se refugiam em galhos a cada manhã. Ser maestro a reger os sons que vêm da floresta, sinfonia fantástica a cada romper de dia, e melhor ainda porque a música vem com cheiro de verde, de vida e de fé na beleza.
O rio agora está livre e começa, vagarosamente, o soprar do vento. A vela se tufa, a bujarrona se compõe e o barco vai. A claridade, com nuances de louro trigal, é festa. Numa ilha ao longe o risco de uma praia deserta com areia cor de maravilha. Começo a rezar, com a fé dos ímpios que é muito mais verdadeira, para que este lindo planeta não se acabe antes de mim.
(Trecho de”O que Escondem as Neblinas”, obra que o autor está finalizando)
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Que CONTENTE fico ao tê-lo como companheiro neste meu amanhecer! Acho que nunca precisamos tanto de beleza como agora. Obrigada!
Parabéns, Antonio Contente,por dividir suas lembranças com a gente!
Linda crônica! Daquelas que dá vontade de estar naquele barco a vela para acompanhar com os olhos, aquilo que ele descreveu. Parabéns!