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Sequestros: explícitos e dissimulados. Por Alexandre H. Santos

Não sequestraram apenas a data da nossa Independência. Tampouco sequestraram só as cores da nossa bandeira…Também sequestraram o próprio conceito de Democracia. De má fé ou por pura ignorância, usurpam a ideia de liberdade. Por fim, sequestraram o protagonismo da sociedade civil.

 

“Se invocam o céu, é para usurpar a terra!”

Maximilien Robespierre

 

Cada vez que vejo alguém se apropriar de um bem coletivo para fim particular, confirmo o estágio primitivo de evolução social em que nós nos encontramos. Pois foi exatamente esse o meu sentimento de cidadão brasileiro ao ver o oportunismo transformar a comemoração dos duzentos anos da nossa Independência em um simples comício de campanha eleitoral. Nenhum outro Presidente na história da República se atreveu a baixar tanto o nível do despautério!

Perdemos a grandiosa oportunidade de utilizar a data para celebrar, não a divisão entre uns e outros, mas a reunião pacífica da cidadania, o apaziguado congresso da nossa pluralidade, o encontro das filhas e filhos com a Mãe Gentil. Estragamos esse magnífico número, dois séculos, transmitindo para o mundo, não a ideia de força e coesão da nossa riqueza geográfica, étnica, cultural. Não! Projetamos para os quatro cantos do planeta a real imagem do país raivoso e conflitivo no qual nós nos tornamos. O tão esperado aniversário – que deveria expressar um hercúleo esforço apaziguador sobre os ismos de todo gênero, número, grau e simbolizar uma trégua fraterna na quase guerra-civil nossa de cada dia – tornou-se, dói dizer, um anti-aniversário!

Particularmente, me senti barrado no baile. Não era essa a festa impessoal e apartidária que eu tinha desejado para nós, brasileiras e brasileiros. Na minha vã expectativa, visualizei algo maior, talvez até sublime, mas algo verazmente nosso, nosso Bicentenário da Independência!

O que vi, porém, foi uma festa privada bancada com dinheiro público.  O discurso e a alegria eram só para a patota. O chefete boçal, com ânimo acirrado, propositadamente empenhado em atacar e dividir, priorizou seu interesse eleitoreiro sobre a data que deveria estar desvinculada do escrutínio e ser literalmente de todos. Não, não era isso que a nação Brasil merecia. Assombrado e incrédulo, assisti a aterradora cena, na capital da República, diante de representantes de Estados Nacionais, de um protagonista nanico, puxando ele mesmo o coro de autoelogio, de macheza vulgar, doentia, de uma suposta perene ereção, diante da multidão de crentes.

Não sequestraram apenas a data da nossa Independência.

Ano passado, na mesma ocasião – a primeira semana de setembro –, quando o clima de tensão chegou ao ápice e se esperava, no limite, uma ruptura institucional, lembro de uma vizinha que me disse com arrogante altivez: “No dia 7, quero ver quem vai me impedir de sair na rua vestida de verde-e-amarelo!” Como se as cores da nossa bandeira fossem propriedade exclusiva de uma escola-de-samba, um time de futebol, uma célula terrorista, seita ou grupelho radical. Como se quem vestisse verde e amarelo fosse mais brasileiro ou brasileira do que quem se veste de branco, de roxo ou de vermelho.

Tampouco sequestraram só as cores da nossa bandeira…

Usurparam a laicidade do Estado. Está lá, com todas as letras, na Constituição de 1988: o Estado é laico! Então, por que Deus acima de tudo? Em que um evangélico é superior ao judeu, ao budista ou ao fiel da Umbanda? Por que Jesus estaria acima de Maomé ou de Shiva? Quem disse que uma cidadã ou cidadão brasileiro, trabalhadora/trabalhador, pagadora/pagador dos seus impostos, não pode ser ateu ou ateia e ser respeitado/a na sua descrença? Por que não? Que mal há nisso? Basta pertencer a uma religião majoritária para receber o aval da honestidade e de bons antecedentes? Aliás, por falar em antecedentes: um casal de criminosos pode ter um filho honesto e do bem? Uma família cristã exemplar é passível de ter uma filha do mal? Que pretendem essas Brigadas Fundamentalistas? Por acaso desejam reestabelecer a nova Santa Inquisição?

Também sequestraram o próprio conceito de Democracia.

A sociedade não é uma máquina Xerox e jamais será! As divergências ideológicas, de opinião e das escolhas constituem o substrato do convívio democrático. Por isso as ditaduras e os governos autoritários são incompatíveis com o ideário republicano. Daí a diversidade não ser uma variável tóxica, mas o lastro flexível que oxigena e sustenta a convivência social. O que querem os xiitas de plantão? Criar um Auschwitz tupiniquim para isolar “quem pensa desigual”? Qual o problema de um cidadão desejar a união civil com outro cidadão, e uma cidadã com outra cidadã? Quem é o caga-regra que irá determinar os caminhos do amor? E quem vai impedir um brasileiro de ser comunista ou de desejar para o Brasil um futuro socialista? Por que não? Cabe sempre à maioria da sociedade decidir o caminho que irá seguir. Esse multiverso dinâmico e imprevisível constitui o tecido da democracia. Dos casais às nações, conviver exige um empenho diário de boa-vontade e superação. Parece difícil? Pois é difícil, tanto aqui como no Canadá e na Suécia. O desafio da convivência respeitosa e não-violenta tem como missão pedagógica lapidar no espírito humano a virtude da tolerância. E sem tolerância não haverá futuro.

De má fé ou por pura ignorância, usurpam a ideia de liberdade.

Ter liberdade não é fazer o que me dá na telha; pois o bônus de ser livre exige o ônus de ser responsável. Meu direito termina onde começa o do outro; e por isso, liberdade de expressão não significa sentir-se à vontade para pregar o ódio, disseminar calúnias, propagar fake News, fazer ameaças ou propor atentados contra pessoas e as instituições do Estado de Direito. Não, nada disso é liberdade de expressão. Essas ações violentas, todas elas, são crimes tipificados no Código Penal, exigem julgamento e, uma vez comprovadas, devem receber punição. Simples assim.

Por fim, sequestraram o protagonismo da sociedade civil.

Nunca tivemos tantos militares em postos-chave de um governo que se diz republicano. Ora, senhores e senhoras fardadas, nós pagamos os seus salários para vocês servirem ao país; não para o país servir aos interesses não-patrióticos de muitos de vocês. Está na hora de voltarem para os quartéis e de viverem, bem e dignamente, com o soldo que lhes diz respeito. Do mesmo modo que eu e milhões de brasileiras e brasileiros vivemos com o que ganhamos com o suor dos nossos rostos. Chega de boquinhas, de mamatas, de leite condensado, Viagra, picanhas, tráfico de cocaína em avião da Força Aérea Brasileira… Chega! Se você, honrado/honrada militar, deseja entrar para a política, antes de fazê-lo, tenha a decência de pedir baixa e deixar definitivamente (sic) o quartel – então, reassuma sua condição de civil, vá em frente e tenha boa sorte.

Para fechar, necessito dizer que acredito piamente que o Brasil vale a pena. Mas não me iludo; sei que nós teremos muuuuuuito trabalho pela frente. Sobretudo para reunir e curar nossa gente, que nos últimos quatro anos foi tão estimulada, pela ignorância e pelo ódio, a não tolerar, a se armar, se conflitar, a matar e se dividir.

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..

Acesse: www.quereres.com

Contato: alex@ndre.com.br

 

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