PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 29 DE AGOSTO DE 2022
O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro?
Nestes 200 anos de independência do Brasil, a grande ideia do governo foi trazer o coração de Dom Pedro I para uma exposição no país.
Não sei bem o que isso revela sobre nós. Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui e em Portugal no momento da independência.
Um coração transportado numa urna de mogno, madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira, dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história.
Na semana passada foi lançado um livro, “Adeus, Senhor Portugal”*, em que os autores defendem a tese de que a conjuntura econômica teve um grande papel no surgimento do Brasil como país soberano. Eles não negam a importância das ideias iluministas que foram o pano de fundo da crise do absolutismo. Mas, ainda assim, afirmam nas primeiras linhas: “O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”.
É delicado discutir o nascimento do Brasil sob esse prisma, pois corremos o risco de concluir que não aprendemos nada em dois séculos. A inflação continua sendo um problema sério, e o rombo no Orçamento cada vez maior, sobretudo com a proximidade das eleições.
O mais interessante nessa história é que tanto a revolta do Porto em 1820 como a rebelião no ano seguinte no Brasil tinham em seu ideário algum controle social do Orçamento, enfeixado nas mãos do governo joanino.
Duzentos anos depois, avançamos pouco nesse quesito. O que os rebeldes queriam, a fiscalização parlamentar do Orçamento, acabou se tornando um pesadelo aqui deste lado do Atlântico. Estamos às voltas com uma luta contra o orçamento secreto, produto do casamento entre Bolsonaro e o Centrão.
É um tema que o país ainda não considerou adequadamente, porque os escândalos começam a pipocar em estados distantes: Alagoas, Maranhão. Quando o Brasil se der conta de que quase R$ 20 bilhões escoam pelo ralo, talvez nos reunamos de novo na Praça Tiradentes, como em fevereiro de 1821.
Há um dado adicional: Bolsonaro não revela seus gastos pessoais pagos pelo Tesouro. Alega questões de segurança.
Muita coisa mudou na forma. O desespero inflacionário atingia na época o consumo de farinha de mandioca e carne-seca. Hoje, carne e leite estão se tornando proibitivos.
A propensão para gastar acima das possibilidades continua sendo uma caraterística insuperável. No tempo de Dom João VI, ainda se podia propor a venda das joias da coroa; hoje, essa proposta se estende às grandes empresas estatais. Mas o que adianta vender, se a propensão a gastar muito nunca é saciada?
Na crise do absolutismo, havia um fator inexistente hoje: os soldados se rebelavam também por falta de pagamento de seus soldos. Os militares de hoje ganham melhor e recebem em dia. Alguns mais de R$ 100 mil por mês, e um grupo seleto de generais alcançou a cifra de R$ 1 milhão mensal, o equivalente ao que ganham craques de futebol, pagos pela iniciativa privada.
Nada disso se expressa num coração guardado numa urna de mogno. E tantas outras histórias mereciam ser contadas nestes 200 anos. O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro e apoiada numa superada visão de defesa nacional formulada pelo general Golbery? Em José Bonifácio aliavam-se a preocupação com o meio ambiente e o combate ao despotismo. Duzentos anos depois, talvez fosse um deslocado no seu país, triturado por gabinetes do ódio nas redes sociais.
Creio que Ruy Guerra e Chico Buarque talvez descrevam em seu “Fado tropical” a saga desse coração ambulante: “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em/torturar, esganar, trucidar/Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora”.
*“Adeus, Senhor Portugal”
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira
Companhia das Letras