O trio costarriquense também premiado. Por Rui Martins
Premiados…Isso significa ser o cinema latinoamericano melhor que o resto do mundo? Seria um exagero embarcar numa conclusão apressada desse tipo. O cinema asiático continua fazendo bons filmes como o filme Stone Turtle, da Malásia.
Cobertura especial do Festival de Cinema de Locarno
Salta aos olhos: a grande vencedora na competição internacional do Festival Internacional de Cinema de Locarno é a América Latina com seus dois idiomas latinos, o português e o espanhol. Senão façamos as contas – dos cinco prêmios entregues no final do Festival, quatro foram para o cinema latinoamericano. Embora tenha havido apoio econômico da França, para o filme Regra 34, e da Bélgica e da França, para Tenho Sonhos Elétricos, tratam-se de coproduções, tudo foi feito no Brasil e Costa Rica, desde a criação do roteiro à materialização das filmagens.
Isso significa ser o cinema latinoamericano melhor que o resto do mundo? Seria um exagero embarcar numa conclusão apressada desse tipo. O cinema asiático continua fazendo bons filmes como o filme Stone Turtle, da Malásia. Portugal e Itália mostraram bons filmes sempre com um fundo crítico e político, Nação Valente e Il Pataffio. Angola chegou a Locarno, na competição Cineastas do Presente, com um filme marcante, Nossa Senhora da Loja do Chinês, e o Azerbaijão com uma estranha e marcante alegoria do fim do mundo, o filme Sermão ao Peixe.
Mas não deixa de ser surpreendente o júri ter decidido premiar por três vezes, melhor direção, melhor ator e melhor atriz, um único filme, deixando de repartir os prêmios. Seria por formarem uma equipe? Em todo caso, haverá sempre os descontentes. A título de exemplo, cito a decisão de dois bons críticos suíços do jornal Le Temps, de publicarem com um dia de antecedência, depois de terem visto todos os filmes, suas prévias de prêmios na competição, muito próximas de minhas previsões. Não acertaram nada, só chegaram perto, ao mencionar o ator do filme premiado como prêmio especial do júri, Gigi, la Legge.
Em todo caso, Tenho Sonhos Elétricos retrata bem, embora com tintas um tanto fortes, o processo de separação de um casal e a reação da filha adolescente de 16 anos, decidida a ficar com o pai, mesmo se ele pode ter acessos de histeria por motivos fúteis e tem dificuldade financeira para se manter e sobreviver. Na verdade, o pai metido a poeta, parece viver uma segunda crise de adolescência e ser mais instável que a filha. É num clima de instabilidade afetiva familiar que Eva, decide perder a virgindade com um amigo do pai, de mais idade, mais pelo desejo de sentir o prazer do sexo do que por amor.
No meio de tudo isso, de discussões dentro do carro, antes da mãe decidir se divorciar, existe um gato que a mãe não quer mais em casa. Eva leva o gato para a casa do pai, porém, aproveitando a ausência da filha, é ele quem dá sumiço ao gato. O clima é sempre tenso, tanto que a irmã mais nova de Eva vive se mijando, molhando fralda e calcinha. O filme começa com um acesso de cólera do pai contra a porta da garagem, por não conseguir abri-la, batendo a cabeça contra ela até sangrar a fronte. Num acesso de raiva incontrolável chega mesmo a tentar estrangular a filha, forçando-a a denunciá-lo por violência.
E com tudo isso, o filme é bom? Sem dúvida! Arte, cinema, literatura não servem como apêndices de cartilhas de boa conduta, simplesmente retratam a realidade vivida pelas pessoas no dia-a-dia, que nem sempre é água com açúcar. E ambos, tanto o pai como a filha, têm seus ótimos intérpretes na jovem atriz Daniela Marin Navarro e no ator Reinado Amien Gutiérrez. Valentine Maurel, premiada por melhor direção, deixa claro isso numa entrevista ao dizer ter procurado colocar no filme “o que pode parecer banal e cotidiano na vida, embora a vida nada tenha de banal e cotidiano” e foi assim que decidiu fazer um filme sobre a personagem de um pai, com todas suas complexidades.
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Rui Martins, especial, direto do Festival Internacional de Cinema de Locarno
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Rui Martins – é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.