instante de morrer

Quando se escolhe o instante de partir. Por Alexandre H. Santos

… A gente não decide a hora de chegar – embora budistas e espíritas afirmem o contrário; mas tem poder de antecipar o momento de ir embora. O livro Los Vencejos, de Fernando Aramburu…

 O amor e a compaixão são necessidades, não luxos.

Sem eles não há como a humanidade sobreviver.”

Dalai Lama

Los vencejos de Fernando Aramburu | Sucede Leyendo

A gente não decide a hora de chegar – embora budistas e espíritas afirmem o contrário; mas tem poder de antecipar o momento de ir embora. O livro Los Vencejos, de Fernando Aramburu, relata a história de um suicida que planeja matar-se com data fixa: dentro de um ano. Sucesso indiscutível na Espanha, o “tijolo” (672 páginas) do premiado autor, relata a contagem regressiva desses 365 dias. O protagonista vai nos familiarizando em slow motion com seu modo de pensar, sentir e atuar, com suas crenças e valores nem sempre coerentes com o que ele diz e faz.

Se no início da Covid-19 nós já tínhamos um cenário mundial de relativa complexidade, podemos dizer que o caldo entornou. Apesar de que, tecnicamente, a pandemia aparenta ter acabado, a fatura real só está começando a chegar: um tsunami de sequelas do vírus, de processos depressivos e aumento do número médio de pessoas que decidem pôr fim à própria vida. O fato tem chamado atenção dos órgãos de saúde pública e incentivado campanhas de prevenção.

Num artigo recém escrito para o diário espanhol El País, a jornalista gaúcha Eliane Brum aponta três cenários para o futuro próximo dos brasileiros: catástrofe, golpe ou dificuldade extrema. Se nos fosse dado optar por uma dessas três possibilidades, a vida cheia de dificuldades poderia ser tomada como autêntica bênção dos céus. Quer dizer, na melhor das hipóteses, o presidente que assumir o Planalto em janeiro de 2023 terá diante de si a visão de uma terra arrasada.

Fernando Aramburu, autor de Los Vencejos

Sabemos que o ambiente gerado por crises socioeconômicas é por si inóspito. Talvez não haja paralelo na história ocidental que possa competir em perdas e danos com o famoso crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Naquele então as dificuldades de sobreviver ao caos na Terra, levou a população norte-americana a um surto epidêmico de processos depressivos e a um número colossal de pessoas que tiraram a própria vida.

Até o último quartel do século XIX, o suicídio era visto como uma questão estritamente pessoal; algo de cunho psicológico. Não se usava cogitar a relação entre a decisão de morrer e causas outras que não fossem íntimas do próprio indivíduo.

É nesse contexto que devemos situar o tremendo impacto de O Suicídio, obra de Émile Durkheim – um dos fundadores da sociologia moderna. A grande contribuição do pensador francês, inovadora na época, foi encontrar uma base estatística para o fenômeno que observava e era tido como divorciado do meio cultural e social que o cercava. Durkheim também inovou ao comparar a sociedade com o corpo humano, no qual tudo está interligado; e desvelou conexões da realidade que até então passavam despercebidas: pessoas casadas se suicidam menos do que solteiras; homens se suicidam mais do que mulheres; quem tem filhos se suicida menos do que quem não os tem, e católicos mais do que protestantes…

Pulando o século XX e aportando em 2022, ninguém duvida que o suicídio é uma chaga social; ou seja, não diz respeito apenas à pessoa que o planeja e executa. E posto que não há vida humana que seja supérflua, inútil ou descartável, cabe a sociedade prover políticas públicas que façam frente à depressão e a sua consequência mais extrema e nefasta. As dificuldades de se viver no Brasil de agora, e as outras que chegarão no ano que vem, não podem e não devem superar a capacidade da nossa gente resistir. Sim, resistir – trata-se de uma responsabilidade coletiva.

Num país de mais de 200 milhões de habitantes, o combate à fome, a miséria, ao desemprego, constitui um desafio diário. É necessário e urgente que se inicie já uma campanha nacional de prevenção da depressão e do suicídio. Isso não será possível sem que cada um de nós exercite a cidadania no dia a dia e em todos os ambientes em que circula. Precisamos assumir uma solidariedade e um amor ao próximo que sejam literalmente incondicionais. Afinal de contas, igual acontece com a eutanásia, ninguém deveria ser obrigado a viver quando a dor e o sofrimento se tornaram insuportáveis. Mas nenhuma cidadã ou cidadão brasileiro deveria sentir dor e sofrimento por sobreviver em condições desumanas!

Krishnamurti diz que “para sobreviver somos obrigados a pensar.” Contudo, a pessoa que está sob a tirania de uma depressão não tem pensamentos positivos, luminosos ou alvissareiros. Los Vencejos acaba de uma forma inesperada; e apesar dos pesares nos oferece uma lição positiva.

Nosso mais imediato compromisso é resistir e acreditar, mesmo quando a primavera pareça distante e improvável.

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..

Acesse: www.quereres.com

Contato: alex@ndre.com.br

 

6 thoughts on “Quando se escolhe o instante de partir. Por Alexandre H. Santos

  1. Muito oportuna esta reflexão que o autor provoca, em especial num momento tão delicado como eu, com 48 anos, nunca havia visto ou sentido na pele. Tive, como muitas outras pessoas, inúmeros dissabores e dificuldades na vida e aprendi, com tudo que o aprender implica, que tudo passa… Mas suicídio? Nunca pensei, NUNCA! E o fato de eu não ter pensado não significa que não haja cada vez mais perto de mim pessoas que pensam em tirar a própria vida. E o que dizer a elas? E como convencê-las para mudarem de ideia? frente à dor e todas as suas mazelas…
    Resistir e acreditar, SEMPRE! Desistir JAMAIS!

  2. Profundo,instigante, nos transporta para a realidade social quando tentamos apenas crer em nosso mundinho ,numa ilha isolada na qual o maior problema ,seja sempre o do outro,sem perceber que somos fios do mesmo novelo.

  3. Parabéns pelo excelente artigo! Faz refletir sobre a necessidade premente do cuidar da saúde mental, diante do adoecimento da sociedade q vivencia sentimentos intensos e conflitos despertados pela morte e vida. Abraço de gratidão por nos brindar com esse artigo e, por conseguinte, indicações de livros.

  4. Parabéns pelo excelente artigo! Faz refletir sobre a necessidade premente do cuidar da saúde mental, diante do adoecimento da sociedade q vivencia sentimentos intensos e conflitos despertados pela morte e vida. Abraço de gratidão por nos brindar com esse artigo e, por conseguinte, indicações de livros.

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