Sabonete Lever e… democracia. Por José Horta Manzano
… Esse Lever se gabava de ser usado por 9 entre 10 estrelas do cinema. (Que se saiba, o fabricante nunca publicou pesquisa feita por instituto sério para embasar a afirmação.)…
Quando eu era criança (faz muito tempo), muito anúncio de sabonete aparecia em rádio, jornal e revista. As marcas mais conhecidas – algumas hoje desaparecidas – eram: Palmolive, Eucalol, Gessy, Phebo, Lifebuoy. E também o conhecido Lever, o “sabonete das estrelas”, que um dia passou a chamar-se Lux.
Esse Lever se gabava de ser usado por 9 entre 10 estrelas do cinema. (Que se saiba, o fabricante nunca publicou pesquisa feita por instituto sério para embasar a afirmação.) Já este blogueiro, que nunca teve vocação pra acreditar em tudo o que se diz, ficava a matutar: “Mas qual será a marca usada pela estrela que, numa amostragem de 10, recusa o Lever?”.
Estes dias, tive notícia de uma pesquisa levada a cabo pela Fundação Tide Setúbal. Mais de 400 empresários brasileiros foram entrevistados e responderam a uma lista de questões. Note-se que eles provêm de empresas grandes e pequenas, de todas as regiões do país. Representam toda a paleta: comércio, indústria e serviços. Segue um apanhado da sondagem.
Democracia
Forte maioria deles (82%) concorda que a democracia, ainda que imperfeita, é preferível a qualquer outro sistema de governo.
Tortura
Uma pergunta era concernente à tortura: 82,5% dos entrevistados repeliu o emprego de tal violência, independentemente das circunstâncias.
Autocracia
Indagados se achavam que, em situação de crise, seria justificável que o presidente da República fechasse o Congresso e governasse sozinho, 55% repudiaram vigorosamente essa solução.
Agora vamos voltar à brecha aberta pelo velho sabonete Lever. Como em toda sondagem, uns concordam com isto, outros discordam daquilo. Voltemos à pesquisa em pauta e analisemos o outro lado da medalha.
Democracia
Considerável fatia dos entrevistados (18%) prefere um sistema de governo diferente da democracia. A pesquisa não perguntou qual era esse regime, mas é lícito supor que 18% dos empresários dão preferência a um regime ditatorial. Não está longe de 1 em cada 5 empresários.
Tortura
De novo, quase 1 em cada 5 empresários (17,5% dos pesquisados) não vê nenhum inconveniente em empregar a tortura em determinadas situações. A pesquisa não perguntou quem teria o poder de utilizar esse método brutal. O carcereiro na cadeia pra corrigir um preso indisciplinado? O policial na delegacia pra extorquir uma confissão? O dirigente de empresa dentro da fábrica pra dar uma lição nos representantes sindicais? O pai de família no quartinho dos fundos pra corrigir o filho rebelde ou a empregada respondona?
Autocracia
Esta parece pior que as demais. Dos empresários entrevistados, 45% acham normal que, em situação de crise, o Congresso seja extinto e que plenos poderes sejam dados ao presidente da República. Não ficou claro o significado de “situação de crise” mas, seja como for, o Congresso abriga os representantes do povo. Fechar essa instituição equivale a curto-circuitar a população e dar plenos poderes à panelinha que constitui o Executivo. Quase metade dos empresários não vê nenhum mal nisso.
Se a pesquisa tiver sido bem conduzida – e tudo indica que foi – a paisagem do empresariado nacional é aterradora. Porção significativa de grandes e pequenos empresários encara a tortura, a autocracia e a ausência de democracia como situações aceitáveis, pra não dizer desejáveis.
A conclusão a que se chega é que o país vai mal mesmo. Pior do que se imaginava. A disposição do empresariado diante dessas três questões concretas é estonteante. Se a pesquisa tivesse sido feita num reduto de devotos do capitão, não se esperaria outro resultado. Agora, de uma amostragem variada de empresários, é de dar vertigem.
Com um empresariado assim, falta muito pouco pra batermos no fundo do poço.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Outro dia postei que o artigo que eu lera fora o melhor que Manzano escrevera. Tenho que me corrigir. Este aqui é melhor. E por uma razão, a meu sentir: com estatísticas fica demonstrado, com clareza e sem filigranas, que o universo sob o alcance dos dados, não terá simpatia por aquilo que homens e mulheres de valor, em épocas e gerações outras e atual, gastam e gastaram suas vidas, um regime que chamamos de democracia. Jamais votaria em nenhum dos candidatos que estão à frente nas atuais pesquisas, mesmo porque seus séquitos fariam de tudo para encaixarem-se no grupo da minoria da pesquisa que, a rigor, não é minoria coisa nenhuma. É chocante a conclusão que o autor oferece com dados, diga-se de passagem.
Pois é, Eduardo: nem um, nem outro.