Os refugiados sírios e a lição da História.
Por Caio Blinder
Em 1939, os EUA se recusaram a aportar o navio “St. Louis”, com refugiados judeus. O navio retornou à Europa e muitos dos seus passageiros morreram nos campos de concentração. Para ser mais exato, dos 620 passageiros que retornaram, 258 foram mortos pelos nazistas…
Publicado originalmente na Tribuna Judaica, edição de dezembro de 2015
Nas semanas finais deste 2015, líderes de várias religiões, inclusive rabinos, fazem apelos para que os americanos não se rendam à histeria e que o país abra as portas para os refugiados sírios. As mentes se fecharam ainda mais depois dos atentados terroristas em Paris no 13 de novembro. Entre os refugiados há terroristas. Toda vigilância é pouca, é o alerta. E eu alerto: toda histeria parece não ser demais em uma situação aflita, temerária e complicada.
Nestas horas, porém, simplismo está na ordem do dia. Refugiado é terrorista. Muçulmano é terrorista. O resultado é que 2/3 dos americanos são contrários à acolhida de refugiados sírios. São refugiados, logo estão fugindo. Eles estão fugindo de uma guerra civil, do Estado Islâmico, da ditadura de Bashar Assad.
No entanto, a Câmara dos Deputados, de maioria republicana e com o aval de muitos democratas, além da maioria dos governadores (quase todos republicanos), rechaça o abrigo aos refugiados. Todos os candidatos presidenciais republicanos estão cantando neste coro.
O governador de Nova Jersey, Chris Christie, supostamente um republicano da ala razoável, esbravejou que no seu Estado ele não aceitaria sequer órfão sírio de três anos (será que cresceria para ser terrorista?)
E alguns políticos republicanos -que coisa vergonhosa- dizem que os EUA devem aceitar apenas refugiados cristãos. Classificação religiosa é excrescência do Estado Islâmico ou do nazismo.
A ironia é que os EUA têm um excelente sistema de triagem de refugiados. Excelente evidentemente não significa perfeito. Por um estudo, dos 785 mil refugiados aceitos no país desde os atentados de 11 de setembro de 2001, apenas três foram presos por associação ao terrorismo.
E sem esquecer outro ponto: os terroristas em Paris eram cidadãos europeus (franceses e belgas). O plano então é impedir a entrada de turistas europeus nos EUA para impedir terrorismo?
Nas semanas finais de 1938, apelos também eram feitos em nome de outros refugiados, refugiados judeus. Havia uma resposta vexaminosa da sociedade americana (meu texto é modesto, limita-se aos EUA e encorpa a vergonha mundial).
Judeus queriam sair da Alemanha nazista e tinham dificuldades para entrar em qualquer lugar. Eu e os leitores conhecemos a história de nossos pais e avós. Seguramente, tenho leitores que conhecem esta saga na própria pele.
Pois bem, nos idos da década de 30, na sombra de uma guerra mundial, na véspera de outra, os americanos temiam que os judeus europeus fossem uma ameaça de segurança, um perigo de esquerda. Claro que tudo é complicado. Havia também o temor de que, como os terroristas islâmicos de hoje, os nazistas infiltrassem espiões entre os refugiados judeus.
Em dezembro de 1938, quando o perigo nazista estava mais do que consumado para a população judaica, pelo menos na Alemanha, o rabino Louis Newman, de Manhattan, suplicou, num esforço de vida e morte, para acalmar a histeria, para conter a xenofobia, para neutralizar o antissemitismo. Ele empreendeu o esforço melancólico para que os EUA impedissem que tantos judeus fossem vítimas do mal nazista.
Ele disse: “Judeus não são comunistas. Judaísmo não tem nada em comum com comunismo”. Claro que havia e há judeus comunistas, claro que os nazistas infiltraram espiões entre refugiados judeus. Há um caso desvendado de espionagem. Em 1942, agentes do FBI corretamente identificaram Herbert Bahr como um nazista pedindo asilo com a alegação de que era judeu.
E obviamente havia maus judeus, como existem em todos os segmentos da sociedade, entre todas as levas de refugiados. Estas são algumas árvores na floresta. Então, vamos queimar a floresta?
Ainda assim, em janeiro de 1939, meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, 2/3 dos americanos disseram que o país não deveria aceitar 10 mil refugiados da Alemanha, em sua grande maioria judeus.
Lembre-se da primeira pesquisa nesta coluna? Números semelhantes de americanos são contrários agora à acolhida de refugiados sírios. Eles morreram no cenário de destruição da guerra civil, eles morreram no Mediterrâneo tentando aportar na Europa (mais de três mil somente em 2015).
Em 1939, os EUA se recusaram a aportar o navio “St. Louis”, com refugiados judeus. O navio retornou à Europa e muitos dos seus passageiros morreram nos campos de concentração. Para ser mais exato, dos 620 passageiros que retornaram, 258 foram mortos pelos nazistas.
Eram dias terríveis para refugiados nos anos 30. Uma outra pesquisa, esta de julho de 1938, mostrou que menos de 5% dos americanos achavam que o país deveriam aumentar as cotas de imigração ou encorajar a vinda de refugiados políticos de países já sob governo fascista na Europa.
A vasta maioria destes refugiados era de judeus. E nesta mesma pesquisa, 2/3 dos entrevistados concordaram com a proposição de que “nós deveríamos tentar mantê-los fora das fronteiras americanas”.
Como hoje (na era de Donald Trump), havia muitos políticos demagogos, xenófobos e vociferantes. OS EUA estavam emergindo da Grande Depressão. Nada fácil para a população acolher imigrantes e encarar a competição econômica.
Quem sabe podemos dar um desconto para esta pesquisa de julho de 1938, feita antes da Kristallnacht, A Noite do Cristal, os pogroms antissemitas que tiveram lugar em 9 e 10 de novembro na Alemanha, Áustria e nos Sudetos (a região da então Tchecoslováquia anexada pelos nazistas). E, ademais, a pesquisa falava em “refugiados políticos”, expressão na época associada a comunistas e a anarquistas.
No entanto, é inconcebível a reação americana na pesquisa Gallup de janeiro de 1939, aquela que mencionei no começo, em que 2/3 das pessoas se mostraram contrárias sequer à ideia de acolher 10 mil crianças judias, refugiadas do nazismo.
Judeus eram tratados no mínimo com ambivalência e no máximo com puro antissemitsmo Estas categorias quem sabe possam ser adaptadas hoje aos refugiados sírios.
Eu não preciso de advertências de que a história é diferente, que existem questões mal resolvidas dentro do Islã ou que os países ocidentais não podem absorver milhões de refugiados (não são apenas sírios),
Sei também da reação vexaminosa de países no Oriente Médio (da sunita Arábia Saudita ao xiita Irã), incapazes de generosidade com refugiados islâmicos. Conheço bem a história de hipocrisia e oportunismo árabe sobre refugiados palestinos.
Tampouco vou dar colher de chá para o presidente Barack Obama. Ele se esbalda em denunciar a insensibilidade dos republicanos nesta questão. Mas Obama é hipócrita. Ele tem culpa no cartório por sua inação na guerra civil síria. Não quis atuar quando a tragédia ainda não tinha adquirido sua atual dimensão.
Isto me faz lembrar um pouco um dos meus heróis, Franklin Roosevelt, salvador do mundo, tanto na Grande Depressão, como na Grande Guerra contra o Eixo. No caso de acolher os judeus que fugiam do nazismo, faltou heroísmo em um dos maiores estadistas que a história conheceu
Nesta coluna, para mim é essencial identificar os ecos de xenofobia dos anos 30 agora no começo do século 21. Puxa, o mundo deveria ter aprendido lições, deveria ter mais vergonha na cara.
No caso de hoje, a xenofobia e a classificação religiosa somente irão reforçar a narrativa do Estado Islâmico e de outros extremistas de que de fato existe um choque de civilizações e que os muçulmanos são tratados como inimigos no Ocidente.
Caio Blinder – É jornalista
Exelente artigo de Caio Blinder, especialmente seu caráter de pesquisa. Soube fazer as aproximações à situação atual da rejeição dos exilados sírios, semelhante àquela dos judeus que fugiam da perseguição e da solução final do nazismo. Mostra que o sentido humanitário, especialmente com crianças refugiadas se coloca acima do nacionalismo e da demasiada prudência política. Ajuda a entender a situação atual e suscita o espírito de solidariedade.
leonardo boff