Locarno

Cena de Nação Valente, de Carlos Conceição. Festival de Locarno

Locarno, filme português, e o mundo aprisionado em ideologias. Por Rui Martins

Cobertura especial do Festival de Locarno

…O cineasta português Carlos Conceição, considerado como um dos integrantes do grupo responsável por um nascente movimento de Novo Cinema em Portugal, trouxe para Locarno sua segunda longa-metragem, Nação Valente, um filme atemporal cuja referência inicial é o ano de 1974, que precede a independência de Angola. Sua primeira longa metragem foi Serpentarius, mostrada no Fórum da Berlinale…

Carlos Conceição - AdoroCinema
CARLOS CONCEIÇÃO, CINEASTA PORTUGUÊS

A temática de Nação Valente sobre um mundo num beco sem saída, inclusive politicamente, com uma esquerda encontrando dificuldade para oferecer uma alternativa nova, parece se encontrar também em outros filmes. Seria talvez decorrente da repetição de guerras e ameaças de guerra em diversas partes do mundo. Situação agravada com a invasão da Ucrânia pela Rússia confundindo o quadro político internacional, já que existem interpretações tanto de direita e de esquerda, condenando ou apoiando Putin.

Carlos Conceição nos concedeu uma entrevista a respeito do seu filme e sobre essa problemática política atual.

Pergunta – Carlos Conceição, seu filme é uma parábola, não é?

Carlos Conceição – Sim, uma parábola sobre o presente, um instrumento para nos indagarmos se as ideias que tínhamos ainda valem ou se estão ultrapassadas. Serão ideias velhas que sempre retornam. A minha principal ambição com esse filme é a de discutir essa questão à luz do presente, para saber se essas ideias já não fazem parte do nosso dia ou que as pessoas já entenderam isso. Até que ponto essas ideias são ainda aceitáveis no contexto do presente.

Pergunta – E nessa falsa mutação do mundo, cujas transformações terminam sempre no mesmo lugar, uma constante são as guerras…

Carlos Conceição – Sim, as guerras parecem ser sempre uma consequência e quando acabam são a origem de novos pensamentos, mas na verdade são ideias antigas nessa constante batalha de ideologias que comanda a existência das pessoas, infelizmente.

Pergunta – É verdade que faz parte de um grupo que organiza um Novo Cinema Português?

Carlos Conceição – Na verdade é a primeira vez que ouço falar nisso. Na verdade, o movimento do cinema português está bastante fraturado e dividido. Não existe um sentimento geracional, um sentimento de grupo ou de parceiro como ocorreu na França com a Nouvelle Vague ou com o Cinema Novo brasileiro ou algumas fases do próprio cinema português.

No momento, principalmente depois da pandemia, me parece haver muito mais um sentimento de busca retrospectivo e quase egoísta, que não é igual a um movimento de partilha e de parentesco. Mas é bom ouvir que fora de Portugal existe essa impressão.

Pergunta – No filme existe uma transição…

Carlos Conceição – Sim, existe uma transição temporal no filme, uma provocação histórica temporal que serve justamente para questionar os espectadores atuais se as ideias velhas do passado estão realmente radicadas no presente. E é todo o entorno do filme, toda dinâmica do filme funciona nesse sentido, quando ouvimos uma determinada narrativa de uma determinada época, em Angola em 1974, há muitos pensamentos que não nos tocam porque sabemos que pertencem ao passado saber se as ideias do passado estão radicadas no presente. É isso que quero que meu filme faça, convido as pessoas a fazerem isso.

Porque é verdade que muitas ideias não estão ultrapassadas. Essas ideias antigas e discriminatórias das ditaduras, do fascismo ainda hoje matam pessoas. Deveríamos virar a página, não voltar para trás e ignorar isso nas novas narrativas? Acho que não, precisamos saber porque essas ideias ainda existem hoje e saber qual o espaço que elas têm para prevalecer.

Pergunta -Seu filme pode gerar muita discussão do tipo esquerda e direita, por tratar da descolonização…

Carlos Conceição – Sim, sinto muito isso no discurso da direita, pois não houve uma descolonização completa da cabeça das pessoas, no sentido de que a descolonização era obrigatória no momento em que aconteceu. O que me impressiona é a descolonização não ter sido completa e absoluta que pessoas continuem defendendo extremismos de extrema direita, que envolvem discriminação de cor, também em sexo, gênero, instrução e assim por diante. Mas as gerações mais novas já estão fora dessas abordagens e já têm uma outra visão, estão fora, porém ao mesmo tempo começam a ressurgir diversos tabus e proibições do que dizer ou não dizer.

Eu penso que isso é o início de um outro ciclo. Mas não seria possível aceitar ou justificar qualquer tipo de colonização. Que tipo de colonização? As que queiram colonizar nossas cabeças com tabus, com ideias morais novas, sobre abordagem de tema e mesmo de produtos industriais, materialismo, tudo isso é uma espécie de colonização, e devemos estar sempre alertas ao que é cíclico ou que é novo, para que evite um retrocesso colonizacional.

Pergunta – No seu filme apareceu uma mulher com o nome de Apolônia, de onde vem esse nome da mitologia?

Carlos Conceição – Eu queria trazer uma personagem quase de tragédia grega épica como Electra, Hécuba, figuras transcendentes como Helena. Eu queria uma mulher que fosse pragmática, uma mulher de carne e osso, tudo menos uma santa, que fosse ela quem trouxesse a luz e o caminho. Apolônia me pareceu um nome apropriado porque foi uma mártir cristã, torturada, que lhe tiraram todos os dentes e, por isso mesmo, se tornou a padroeira dos dentistas.

Pergunta – Não se trata de uma última pergunta, mas de um complemento – Apolônia no filme era uma prostituta.

________________________________________________

Rui Martins, especial, direto do Festival Internacional de Cinema de Locarno

________________________________________________

Náufrago da Utopia: RUI MARTINS: BRECHT O CHAMARIA DE "IMPRESCINDÍVEL"Rui Martins – é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter