Olha a faca! E outras terríveis tendências. Por Marli Gonçalves
Olha a faca! Tenho verdadeiro horror às armas chamadas brancas, especialmente facas. Às vezes até penso se não houve algum episódio, sei lá, de vidas passadas – devo mesmo ter sido atingida por uma. Ultimamente temos sabido de tantos casos de ataques com facas, que demonstram que o país ficando cada dia mais violento e armado, seja com o que for, inclusive com a língua ferina, e já fora de qualquer controle, modas macabras. E tudo está virando “legítima defesa”
Facas são traiçoeiras. Armas, todas, são traiçoeiras, claro. Mas enquanto andamos – e com razão – bem preocupados com o aumento de armas de fogo no mercado, incentivadas pela “besta” (e que não é aquela com arcos de flechas), as facas são livres, comuns, bem fáceis de serem encontradas em todos os locais e cozinhas. Uma lâmina qualquer que zune, em qualquer tamanho e forma, pode matar, aleijar. Fazem um estrago danado, usadas de bem perto, como já vêm sendo entre as quatro paredes das casas das inúmeras mulheres mortas por seus ex-companheiros que, com elas, aplicam golpes de suas raivas incontidas buscando não só desfigurar suas vítimas, mas estripá-las, deixá-las sangrando, como num fetiche de terror. Soubemos de mais vários casos essa semana, inclusive cortando bebês. Os casos de feminicídio se multiplicam, a cada dia mais tenebrosos, embora quase todos com o mesmo batido roteiro. A verdade é que as mulheres continuam desprotegidas, e quando denunciam não há proteção real que faça com que a lei se cumpra. Isso precisa acabar.
Aliás, pra ilustrar ainda melhor, soube do delegado, lá no Rio, de uma Delegacia da Mulher, que espancava a esposa e foi denunciado?
Voltando às lâminas malditas e armas que se multiplicam nas mãos dos caras que juram que são esportistas ou caçadores, e até legalizadas para organizações criminosas – nosso país virou mesmo uma balbúrdia. Ainda tem a versão facão – com sua aparência bruta, em geral enferrujada na utilização em outros serviços, ainda mais tenebrosa, anormal e decepante.
Acontece que estamos cercados por todas as formas de violência, nesse momento de retrocesso geral que parece ter dado marcha-a-ré no tempo, e muito rápido. Volta agora a ser frequente também ouvirmos a justificativa mais dolorosa, a da legítima defesa, e nós mulheres precisaremos já nos organizar para que não retorne sua pior versão: a de legítima defesa da honra que tanto nos matou sem a punição dos assassinos.
Estou ouvindo o podcast Praia dos Ossos (vale a pena) e logo nos primeiros episódios, relembrando detalhes à época do julgamento, anos depois, de Doca Street, que matou Angela Diniz em 1976, é difícil não sentir nojo dos detalhes usados para crucificar a vítima em busca de inocentar o canalha. Lutamos muito contra essa tal legítima defesa da honra que perdurou durante muito tempo, e de certa forma está sempre por aí tentando renascer. O argumento da “sob forte emoção” volta a pairar, como se as vítimas fizessem que fizessem, forçassem, para se tornar justamente vítimas.
Tem muita coisa voltando à tona – não esmagamos suas cabeças adequadamente, nem usamos balas de prata. Dos Anos 70, além da moda que vamos e venhamos era horrorosa, vêm ressurgindo a repressão, a censura e a violência contra a mulher que assistimos muito naqueles anos quando começamos a finalmente nos liberar e aos costumes, saindo para trabalhar, reafirmando nossos direitos, inclusive à até então sufocada sexualidade. O desprezo pela vida, as facas furando corpos, os tiros à queima-roupa.
No entanto, tem voltado, ao mesmo tempo, a nossa ânsia pela liberdade e por pessoas mais capacitadas para nos conduzir adiante, igual àquela luta que empreendíamos no final dos anos 70, depois de muitas perdas, e que enfim só resultaram em coisas melhores na década seguinte. Uma boa moda, essa, agora com o Manifesto do Largo São Francisco (Estado Democrático de Direito Sempre!!!) e que de alguma forma reescreve a histórica Carta Aos Brasileiros, de 77, para os dias de hoje.
Era agosto de 1977. Agora estamos, 45 anos depois, em outro agosto, de 2022, e esse novo manifesto se espalha com força e se torna uma arma, sim, mas arma boa e que pode abrir novamente nossa esperança de que logo logo nosso coração ao menos se apazigue contra as ameaças que vêm sendo feitas ao país, e que nossos ouvidos parem de ouvir tantas sandices como as que temos ouvido diariamente nos últimos longos e sofridos quatro anos, que começaram justamente, ironia, com uma facada.
Que essa, sim, seja tendência que se espalhe, a de retomada. Pela nossa honra, de todos e todas nós, sem tanto sangue vertido, e com muita emoção, sim, felicidade.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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