Sexo por obrigação. Por Myrthes Suplicy Vieira
… reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.
De todos os pronunciamentos delirantes a respeito da condição feminina, sua estrutura psíquica e interpretações quanto à sua disponibilidade para o sexo feitos ultimamente por integrantes da ala masculina ultraconservadora brasileira, o mais surpreendente e intrigante foi sem dúvida o registrado pela pena do digníssimo procurador de São Paulo, Anderson Gois dos Santos.
Num e-mail enviado a seus colegas da Procuradoria, ele propõe textualmente que “é de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”. E acrescentou, para perplexidade geral: “A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação, sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”.
Fiquei tão impactada com o caráter medieval da proposta que fui pesquisar na Internet o que significa aos olhos da lei o débito conjugal e como esse conceito se insere na jurisprudência brasileira. Descobri que ele teve origem no Direito Canônico e foi absorvido no Código Civil de 1916. Depois que a constituição de 1988 introduziu a necessidade de observância do direito à dignidade de toda pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres no casamento, a tese perdeu amparo legal, embora hoje em dia ainda existam casos de pedidos de divórcio aceitos em tribunal por ter a mulher se recusado a fazer sexo com o marido.
Dado o furor condenatório com que juristas e colegas procuradores receberam a proposta, acusando seu autor de estar disfarçadamente defendendo a legalidade do estupro marital, ele achou por bem se antecipar e esmiuçar as ‘terríveis’ consequências sociais da não-aprovação de sua proposta: a recusa feminina em cumprir suas obrigações sexuais teria o potencial de levar a “traições desnecessárias” [não deixou claro se, no seu entender, haveria alguma forma de traição necessária], consumo de pornografia e acúmulo de pedidos de divórcio.
Arrogou-se ainda o direito de pontificar sobre questões fora de sua área de especialização, fazendo uma incursão amadora, típica de almanaque de farmácia do início do século 20, ao território da psicologia e da psiquiatria. Associou o feminismo a um “transtorno mental” ainda a ser catalogado num futuro CID [Classificação Internacional de Doenças], apontou as causas do distúrbio como “problemas com os pais na criação” e “muita mágoa no coração”. E foi além, descrevendo no mais misógino dos estilos a luta pelo empoderamento feminino como uma “tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino, gerado por suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Culpa da vítima, é claro.
Confesso que fiquei na dúvida se o foco de sua intervenção era efetivamente o de discutir os aspectos psicossociais pertinentes às obrigações conjugais ou se, além e acima dessas preocupações, pairava na mente dele a urgência de encontrar formas jurídicas seguras de proteger o patrimônio financeiro do homem casado, livrando-o da necessidade de dividi-lo com uma esposa não merecedora de tal ‘privilégio’.
Não pretendo ir a fundo na exploração das impropriedades científicas nas quais ele incorreu ao se manifestar sobre traumas psicológicos, dificuldades de identificação com o papel sexual e motivações aberrantes que comporiam em tese o perfil das mulheres feministas. São tantos e tão complexos os fatores envolvidos nessa questão que prefiro me abster, por puro cansaço e tédio antecipado. Deixo a cargo dos especialistas em psiquiatria a revelação de quais e quantos transtornos mentais estão na base da virilidade tóxica, essa sim uma doença passível de enquadramento num próximo CID.
Entretanto, reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.
No entanto, o que mais chamou minha atenção na proposta de revitalização da norma de “débito conjugal” foi a desconsideração – intencional ou acidental – da existência também da obrigação do marido em manter relações sexuais regulares com sua esposa. Passei horas me divertindo com a possibilidade de inversão do raciocínio, isto é, a eventualidade de uma mulher ingressar na justiça com uma queixa contra o esposo por ele ter falhado em cumprir suas obrigações sexuais no casamento e consequentemente pleitear que ele fosse destituído dos direitos à divisão do patrimônio do casal.
Em meio a piruetas mentais, acabei concebendo a seguinte cláusula contratual pré-matrimonial que poderia ser exigida pela mulher: “A parte masculina do presente contrato compromete-se a realizar o ato sexual com a parte feminina no mínimo 3 (três) vezes por semana, por todo o tempo que durar a convivência do casal, independentemente da presença de fatores limitantes à atividade, como idade, doenças físicas e mentais, abatimento com a situação financeira, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas e outros elementos intervenientes ocasionais, com penetração obrigatória em cada coito e número indeterminado de tentativas, até que a parte feminina atinja o orgasmo ou se declare plenamente satisfeita. Se, para tanto, a parte masculina não corresponder às expectativas de desempenho da parte feminina, assim descumprindo a presente cláusula, sob qualquer tipo de alegação, estará ele sujeito à pena de dissolução unilateral do contrato conjugal e perda do direito à divisão dos bens patrimoniais auferidos pelo casal”.
Cheguei até a fantasiar uma cena de novela rural ilustrativa desse novo enquadramento jurídico: uma “coronela”, empresária de sucesso no ramo agropecuário, entra no quarto do casal e dirige-se ao marido, que está deitado, de pijama e cueca furada, fingindo dormir, com as seguintes palavras: “Levanta já daí, seu imprestável! Vai se lavar porque hoje eu vou te usar”. Ou ainda, num contexto mais urbano, uma cena em que a mulher informasse ao parceiro intimidado por não conseguir uma ereção: “Vamos logo que hoje eu estou sem tempo e sem paciência. Se você não der no couro, vou dar para o primeiro que passar pela minha porta”.
Voltando a falar sério, qualquer que seja o ângulo pelo qual a proposta do procurador seja examinada, fica claro que não se trata apenas de anacronismo obscurantista: é um total desconhecimento da fisiologia humana e do funcionamento psíquico. Como associar sexo a obrigação se estamos falando de uma pulsão animal natural e instintiva que tem como principal propósito o prazer e o alívio das tensões? Como garantir a necessária lubrificação na mulher e a ereção masculina se na cabeça dos parceiros há um imperativo categórico de desempenho imediato? Até mesmo entre animais inferiores na escala filogenética, se a fêmea da espécie não consente com a cópula, mesmo estando no cio, ela simplesmente não acontece. Não há nada que o macho possa fazer para dissuadi-la da recusa, a não ser estuprá-la, é claro – mas, se isso acontecer, quase certamente ocorrerá em meio a muita luta, sangue e provável despedaçamento de corpos.
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Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
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Prezada Myrthes. Teu texto é ótimo de ler. Minha mulher leu antes de mim, agora há pouco, e saiu da leitura rindo muito. Mais uma vez, relembrou um episódio de sua época de residência, em neurologia, uns trinta anos atrás (depois acabou fazendo mestrado e doutorado na área da psiquiatria, sendo, pois, uma tua colega transversal). O episodio em questão, que ela me contou de novo quase sem conseguir falar de tanto rir (e que deixou nossa filha boquiaberta, pois que ainda não a ouvira), resume-se a isto: Já conhecendo certo docente na clínica de neurologia do hospital universitário, minha mulher sabia que o sujeito era um chato digno de condecoração. Não apenas chato, no entanto, o elemento também era um sexista da pior espécie, daquele tipo que sempre consegue tirar do bolso da memória uma piadinha estúpida sobre a vanidade, a futilidade ou a concupiscência femininas. Como se tratava de um sujeito importante ali dentro, ninguém ousava contestá-lo ou deixar de fazer de conta que ria das anedotas moralmente miseráveis que ele narrava como um low range stand up comedian deveras contente consigo mesmo. Pois bem, certo dia, ao chegar à sala de reunião da clínica, esse senhor tomou pelo braço um residente e, diante de outros tantos médicos e médicas (minha mulher inclusa), perguntou se esse rapaz conhecia uma piadinha, que tratou de logo apresentar. Perguntou: “Como neurologista, você sabe o que deixa uma mulher totalmente descontrolada de tesão?” O rapaz – conta minha mulher – apenas corou, sem saber o que dizer. É quando o bacana, já rindo de sua própria genialidade, retoma a palavra e encerra assim a piada: “Ver um homem mexendo em sua carteira! AH AH AH! Nada segura uma mulher que vê um homem com a carteira na mão!” Desnecessário dizer que todos os machos presentes riram o suficiente para evitar ao douto professor a impressão de que não haviam gostado de blague tão genial… Infelizmente, no entanto, nem tudo termina assim tão bem, posto que minha mulher, vale relembrar, encontra-se no recinto. É ela, diante da plateia embasbacada, que chama aquele senhor para uma conversa e, fazendo-se de inocente, pergunta-lhe se fora assim que ele conquistara a própria patroa – que, aliás, quase todos ali conheciam. Dessa vez, parece, coube ao idiota corar um tantinho e tomar o rumo da porta com cara de comida estragada. E consta que nunca mais contou piadinhas desse tipo em presença de nenhuma senhora. É verdade que minha mulher correu certos riscos ali, mas ela sabia que qualquer atitude que esse senhor tomasse contra ela teria repercussão muito mais donosa a ele próprio. Ambos ainda se reencontrariam muitas vezes, em hospitais, na universidade, em reuniões científicas mundo afora, e sempre tiveram atitudes mutuamente protocolares, porém simpáticas. No íntimo, ela sabe que aplicou uma lição no sujeito. No íntimo, só ele sabe se aprendeu ou não…
(Aqui, ao meu lado, nem um pouco nostálgica desse Brasil preconceituoso, mentalmente pré-cambriano, ela me pergunta se Bolsonaro não terá conquistado as suas muitas mulheres com base na mesma estratégia. Tudo o que posso dizer é que acho possível.)
Posso estar enganada, mas minha intuição me diz que o furo é mais embaixo. Acho que o dinheiro é um drive secundário. O que deve excitá-lo mesmo é a transgressão, o poder conquistado por debaixo dos panos, o risco de ser apanhado com a boca na botija. Acho que ele precisa de uma “generala” para assumir o controle da vida dele, só para posteriormente inverter o jogo de poder e torná-la cúmplice. O jogo sexual entre ele e a mulher de ocasião deve ser o de torturador-torturado, deve envolver muita tensão. Agora, para as mulheres da vida dele, o dinheiro/status deve ser realmente um motivo primário: basta fingir que foi subjugada para ter acesso a todas as benesses (desde que não o chantageie, ameaçando quebrar o silêncio)