A eterna magia do cinema. Por Antonio Contente
…lanço a insólita pergunta, como um dardo: — Me fala uma coisa, amigo, tu já foste, algum dia da tua vida, ao cinema? — Já! – Ele respondeu, com segurança….
Janeiro é Inverno na Amazônia, pois assim é que lá chamam a Estação das Chuvas. Cinzentos ficam os céus durante dias e dias, tornando mais escuro o tom verde das folhas. A água que do alto despenca cala os passarinhos e faz com que as gaivotas, voadoras eternas, pousem; já nos corações d’algumas pessoas se instalam propensões às nostalgias das lembranças. O que lembro daquele universo, nos meus tempos da menino, é que pouco sentia a falta do sol. E me entregava às perspectivas de que, como na Macondo do “Cem Anos de Solidão”, o bom seria se chovesse, ininterruptamente, durante cem dias.
Mas estou falando disso porque foi numa Estação das Chuvas, já faz algum tempo, que tive um dos papos mais instigantes numa beirada de ilha no Delta do rio Amazonas. Já chovia sem parar há mais de duas semanas e, na pequena comunidade de pescadores, nos reuníamos numa rusticamente charmosa biboca onde havia refrigerador movido a querosene, pleno de cervejas. Geladas? Nem tanto…
E foi lá que encontrei, certa tarde, veterano pescador meu amigo de muitos anos. O velho Porto estava, então, com exatos noventa anos, porém não largava sua atividade. Ele apareceu no instante em que eu acabara de sentar diante do primeiro copo e, como vi que chegara do âmago de um forte temporal que desabara logo após o almoço, perguntei como enfrentara as ondas em alvoroço.
— O mundo – faz um gesto largo – parece que ia acabar.
— E o que fazes nessas ocasiões, amigo Porto?
— Seguro firme o leme e controlo a vela. Senão o barco vira.
— E, naturalmente, rezas…
— Não, rezo antes de ir. Pois se for rezar na hora do sufoco, distrai a atenção. Se tudo termina bem, rezo de novo.
— Pra que?
— Para agradecer.
No que a noite cresce, já com várias garrafas vazias colocadas a um canto e outras, cheias, sobre a mesa, revejo que quase ninguém utilizava rádios, mesmo de pilhas na, se assim podemos chamar, colônia. Jornais, nem pensar. TV? Santo Deus, jamais, pois não havia energia elétrica. E foi envolvido por esses pensamentos que, de repente, seguro no braço de Porto que, como já disse, estava, à época, com 90 anos. E lanço a insólita pergunta, como um dardo:
— Me fala uma coisa, amigo, tu já foste, algum dia da tua vida, ao cinema?
— Já! – Ele respondeu, com segurança.
Diante daquilo fiquei meio desconcertado e curioso. Tanto que procurei ganhar tempo:
— Já mesmo?
— Já, em Belém. Só uma vez, faz muitos, muitos, muitos anos. Levado por compadre meu que morava lá. Foi no cinema Olympia, pra chegar pegamos dois bondes e descemos perto do Theatro da Paz – forneceu detalhes.
— Puxa, que maravilha – coço a cabeça – que bom saber que já viste cinema.
O pescador Porto ia dizer qualquer coisa, porém cortei:
— Mas e o filme? Lembras qual foi o filme que viste?
— Filme? Que filme?
— O cinema, as imagens que apareciam na telona na tua frente.
— Ah, coisa bonita, muito bonita. Tinha a mulher, linda, parecia santa, que usava chapéu. E aparecia um homem, vestindo uma capa, como se fosse batina; só que branca.
Exatamente nesse instante fui, realmente, mordido pela curiosidade. Afinal – me perguntei – que filme esse meu bendito amigo viu naquele tempo em que pelas águas da baía só corriam as vigilengas movidas à vela? Volto a falar, após dar mais um gole na cerveja e limpar a espuma nos lábios com a costa da mão direita:
— Sim, tu disseste que na tela tinha uma mulher com chapéu e um homem com capa…
— É, eles falavam, falavam baixinho, numa língua que eu não entendia. Estavam num lugar aberto, era de noite.
Cocei a ponta do nariz por estar concluindo que, daquele jeito, não chegaria a nada. Mesmo assim, segui:
— Falavam naquela língua que não entendias e o que aconteceu? O homem beijou a mulher?
— Bem – Porto me encara – não estou lembrando se teve beijo ou não.
— OK, OK. Mas o que o homem e a mulher faziam naquele lugar aberto? Lembras?
— Falavam. Estavam rodeados por uma nuvem.
— Nuvem? Voavam?
— Não, era uma nuvem no chão.
— Uma névoa, neblina com essa que aparece em certas manhãs sem vento cobrindo a superfície da baía? — Parece que eu começava a ver luz no fim do túnel.
— Isso mesmo, como essa fumaça da manhã em cima do rio. O homem falava com a mulher; depois, a mulher foi embora.
— Foi embora como? Andando?
— Não, num avião. Ela entrou num avião e foi embora, no meio da neblina.
Com insuspeitada agilidade dei um salto da cadeira, berrando: “Pelas babas do profeta, descobri! Descobri”! Meu amigo Porto Siqueira, solitário pescador de uma ilha na foz do rio Amazonas viu, em algum momento de sua vida, “Casablanca”. Filme amado por 10 em cada 10 cinéfilos.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Muito bom. Confesso que pelas indicações, eu que não tenho nada de cinéfilo, apenas gosto de assistir, também apostei no Casablanca. Grande, Mestre!
Uau, amigo velho, ou velho amigo, você está também por aqui. Bravos! Achei que era só no face. Abração. O velho Porto já deve ter ´partido, né?
Porto já deve ter partido, né?