ortópteros e politica

De política e ortópteros. Por Antonio Contente 

… Daí contou que na quinta do mês anterior que não sabia o dia, o Jornal Nacional foi interrompido para a exibição do horário político dedicado ao PMDB. Para quem não lembra, tratava-se da agremiação partidária que, na época, teve um candidato a governador..

                               ortópteros e politica

         Quando, no século passado, eu trabalhava na Folha de S. Paulo e residia na capital, tinha um amigo, com cerca de 80 anos, pinta impecável, que morava numa ampla, linda, bem cuidada, mas decadente mansão em Higienópolis. Não apenas o imóvel, como o próprio personagem, eram o que restava de uma das antigas famílias paulistas. Seu avô paterno, riquíssimo, tinha sido “barão do café”.

         Bom, mas o camarada a quem me refiro vivia com mordomo, arrumadeira e uma cozinheira na casa enorme que a impiedade do tempo, lentamente, corroía. De família, apenas parentes remotos. Nada de filhos. Como possuía várias dezenas de imóveis bem alugados, estava longe de ser duro. Inclusive, em certos fins de semana costumava receber interessantes visitas femininas, às quais, invariavelmente, servia, em cálices de cristal veneziano, finíssimos vinhos do Porto; ou “Port wine”, como gostava de dizer. Eu, sempre que aparecia, era brindado com um Jerez. Ele afirmava: “Esta bebida combina com você. Pois você é barroco”.

         Assim foi que, um dia, cheguei para papinho de fim de tarde e o esplêndido quatrocentão começou a falar a respeito da solidão. Súbito, enquanto passeávamos pelo jardim com flores levemente fenecidas, ele segura no meu braço. Murmura:

         — Sabe?, para vencer minhas horas de solidão tenho duas alternativas. Como fiz pausa em leituras, fico sentado na cama apreciando os movimentos das baratas e lagartixas; ou assisto tevê.

         — Ora – dou um sorriso – você, naturalmente, prefere o segundo passatempo, certo?

         — Nem tanto – ele me garante – aliás, na maioria das vezes, entre a tevê e apreciar baratas, prefiro sacar as bichinhas.

         Depois deste papo algo surrealista fiquei pensando que o charmoso solitário resolvera fazer tipo. Afinal, optar por um repelente inseto em vez de programas na telinha, pôr pior que estes possam ser, é dose. Apesar de que o amigo era dono de lucidez espantosa.

         Pois bem, certa vez eu precisava fazer algo lá pelo bairro mesmo quando, sem querer, mas talvez querendo, me vi diante do imponente palacete do meu amigo. Claro, toquei a campainha.

         — Ora, ora – ele veio, braços abertos – quem não morre sempre aparece. Continuo lendo suas crônicas diariamente.

         Fui entrando e, confesso, constatava, mais uma vez, o quanto gostava daquela suave decomposição, daquele vago cheiro de mofo misturado com lavanda e alfazema. Até o robe-de-chambre do meu bissexto anfitrião, impecável, mas nobremente fora de moda, conservava finesse e encanto. Entramos, sentamos, peguei meu cálice com Jerez.

         — E então – pergunto – você está na fase da tevê ou das baratas?

         — Bem – ele sorri – como a amiga que hospedei uns dias aqui voltou para o Rio Grande do Sul, tornei imediatamente à fase dos insetos. Mas como percebi que vinham fazendo a mesma coisa, dei uma passada pela tevê. Só que quando foi naquela quinta-feira do mês passado, dia…Dia…

         — Ué, o que houve na tal quinta-feira? Não interessa o dia — interrompo.

         — Pois é, na fatídica quinta-feira voltei, com toda força, às baratas.

         — Mas por que?

         — Sabe? – Ele me encara – Há programas de tevê que você até pode assistir inteiro, como um bom filme ou certos documentários da BBC, por exemplo.

         — Exato – concordo.

         — Há inclusive outros programas – ele continua – que mesmo sendo solenes porcarias, você resiste quinze ou dezesseis minutos.

         — Muito bem – cruzo as pernas – um programa chato desses te deu no saco e você voltou aos insetos, foi isso?

         — Não, eu voltei a eles por causa de outro programa, bem específico.

         Daí contou que na quinta do mês anterior que não sabia o dia, o Jornal Nacional foi interrompido para a exibição do horário político dedicado ao PMDB. Para quem não lembra, tratava-se da agremiação partidária que, na época, teve um candidato a governador muito, para usar recorrente eufemismo, maroto. Diante da falta de carne nos açougues que ocorrera durante o esquisito governo do doutor Sarney, por exemplo, ele enganou muito trouxa jurando que, eleito, iria pessoalmente para os pastos laçar quadrúpedes ruminantes para colocar os bifes nas panelas dos necessitados. Foi então que o em certo tempo heroico PMDB das lutas contra a ditadura se tornou o Partido do Me Dá um Boi.

         — Mas você assistiu o programa do tal partido até o fim? – Retomei o fio do papo.

         — Negativo. Vi durante dois minutos, quatro segundos e dois décimos. Então, descobri.

         — Descobriu o que?

         — O seguinte – ele termina – se entre o troço do PMDB e as baratas eu preferi ficar com estas, é sinal que os ortópteros onívoros, da ordem dos balatários, naquela noite salvaram não só minha solidão; mas, principalmente, a sanidade da minha consciência política…

         Certa manhã, passados dois meses, eu estava na redação do jornal quando me chega um pacote, enviado pelo amigo. Abro e vejo uma edição antiga, muito antiga, encadernada em couro com letras douradas na capa, do magnífico “Far From the Madding Crowd”, de Thomas Hardy. Na mesma tarde fui ao palacete de Higienópolis, para agradecer. Mas o morador, na véspera, tinha ido para a Suíça. E lá, semanas depois, na estação de esqui de Schwarzsee/Matterhorn, em Zermatt, caiu de alta escarpa, em companhia de uma alemãzinha linda, de 20 anos. Só ela, mesmo quebrada, escapou. E, ao ser perguntada pelos socorristas se o idoso era seu avô, respondeu: “Não, meu noivo. Casariamos na próxima Primavera”.

ANTONIO CONTENTE, TODAS AS SEGUNDAS, AQUI NO CHUMBO GORDO!

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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