São Paulo continua feia. Por Marli Gonçalves
Duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, vêm sendo escarafunchadas esses dias e ao fim e ao cabo sempre aparece aquela eterna luta entre a elite, sua miséria e glamour, e a realidade, sua miséria e glamour, surpreendentemente lados iguais de situações tão distintas
Com tantas coisas acontecendo, capazes de transtornar nossas vidas muito e ainda mais nos próximos anos, acreditem, a polêmica da vez na semana foi o texto, diríamos bem equivocado, mas bastante pessoal, do artigo de Washington Olivetto publicado em O Globo, e a gigantesca repercussão do ótimo podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, de Chico Felitti, para a Folha de S. Paulo.
No artigo “O Rio de Janeiro continua lindo”, como quem não quisesse nada, Olivetto descreve a tour de seu filho Theo, que acabou de entrar para uma faculdade, claro que lá fora, e que quis comemorar com mais quatro amigos, estrangeiros, só um também brasileiro, no Rio de Janeiro. O publicitário conta que tentou desfazer nos garotos, com a agenda que criou, a “péssima imagem que o Brasil vem construindo no exterior há vários anos”.
Mal sabia ele que o texto provocou o total contrário por aqui, inclusive prejudicando a sua própria imagem, a de pai, a de brasileiro, que inclusive já há alguns anos vive bem longe daqui, em Londres, e até a de escritor e publicitário premiado. No texto cheio de deslizes, como a citada babá que virou “parte da família”, mas sem ganhar exatamente o sobrenome famoso ou as coisas de que cuida na ausência do patrão internacional, ele discorre sobre passeios, as encomendas caras e certamente deliciosas que fez para os meninos, e ainda as idas a restaurantes com muitos $$$$$ e seus chefs maravilhosos.
Lendo o texto, admito que não pude deixar de comparar com a minha recente viagem de alguns poucos dias ao Rio de Janeiro, da qual recordarei ainda durante muitos meses pagando as prestações e cartão de crédito, e além dos bons momentos. Tudo bem, que adoro o Rio. Mas me diverti pensando, lembrando bem de que eu e meu irmão passamos na frente dos restaurantes citados, sei onde ficam, mas nós estávamos sempre a caminho de algum $$, no máximo. Assim como os turistas de Olivetto, também fomos ao Museu do Amanhã – idosos lá não pagam! – e na volta, de BRT, paramos na Cinelândia onde havia um enorme protesto estudantil – estão querendo cortar verbas da Universidade Federal. Também fomos ao Pão de Açúcar – lá idoso paga meia e no cartão deu para dividir o preço dos ingressos.
Fomos à praia tomar chuva e vento, que os dias que estivemos lá a temperatura estava tenebrosa, proibindo até aquele banho de mar de descarrego.
Lendo o texto tive dúvidas e fiquei pensando como todos se locomoveram, seguros. Um motorista? Também tivemos o nosso, os ônibus do Rio estão caindo aos pedaços e o motorista, cara de poucos amigos até para dar informação, também é cobrador, com uma caixinha horrorosa e suja ao seu lado direito, de onde cobra e pega troco. Shows não fomos, vocês bem sabem: os ingressos estão na hora da morte. Mas Olivetto e os meninos devem mesmo ter sido convidados vip pelo Caetano Veloso.
No texto, o sonho acaba, com John Lennon citado e tudo. E todos voltam para a “vida real”, Londres! A última pérola foi a citação do filho que teria dito que aqueles dias haviam sido sua “pós-graduação de vida”.
Enquanto isso, na minha São Paulo, suja e malcuidada, a da Cracolândia móvel que aterroriza o Centro, dos roubos e sequestros em cada esquina, do barulho ensurdecedor, ficamos sabendo de excursões ao bairro “chique” de Higienópolis, onde fica a casa abandonada do podcast estrondoso. O que as pessoas querem? Ver se se surge na janela a mulher estranha com pomada branca na cara, ali escondida há 20 anos depois de fugir dos Estados Unidos para não cair – lá, porque aqui é difícil alguém rico ser condenado – nas mãos da Justiça e onde escravizava e torturava a sua empregada doméstica. Querem ver a casa destruída onde ela, Margarida, seu nome, mora, em terreno muito, mas muito mesmo, valioso, dizem até que jogando excrementos nas paredes dos muros dos prédios vizinhos, entre outras esquisitices. Ninguém sabe exatamente se a mulher continua perambulando ali na casa abandonada e suja, pode ser que tenha saído – ela tem irmãs, e parte a receber do fabuloso inventário, que agora a imprensa revela inclusive mostrando fotos internas da casa, parte do processo que se alonga.
Diante da mansão fazem fotos, gravam vídeos, até caça-fantasmas apareceram ali, além de, claro, a turma da Luisa Mell que resgatou, pulando o muro, os enormes dois cachorros da casa. O assunto é notícia todos os santos dias, como se fosse essa a única casa abandonada dessa cidade, e fosse essa a única mulher a ter uma história tão terrível nessa cidade cheia de crueldades em cada esquina, em cada andar de apartamentos e condomínios.
Ainda não soube disso por aqui, mas desse jeito, com esse sucesso, não vai demorar para São Paulo copiar o Rio de Janeiro, e aparecerem agências de turismo fazendo tours para que as pessoas, dentro de jeeps mais parecidos a aqueles de safaris na África, até meio gradeados, e que vi muitos a caminho de seus destinos na orla da praia, cheios de gente indo visitar alguma das centenas de favelas que crescem mais e mais na Capital. Ou, quem sabe, que tal?, uma ida às Cracolândias, visita aos buracos de rua, conhecer como vivem os milhares jogados cobertos como sacos de lixo, dentro de caixas de papelão ou barracas improvisadas. Boiando em enchentes. Com fome. Catando lixo para comer.
A imagem do país no exterior tão cedo não vai mesmo melhorar. Mas, olha! Uma ideia de passeio para o Olivetto na próxima estada do filho e dos amigos no Brasil. Isso sim, acredito, seria uma excelente “pós-graduação na vida”.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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Boa noite, Marli Gonçalves.
boas!
Olá Marli!
Em resumo, lá como cá nada é belo e, pouco se faz para que assim seja…
Desculpem os cariocas, mas o Rio é feio se visto do chão, não do alto; agora com o domínio de milícias e outros grupos pouco ou nada resta do que um dia ainda podia atrair interesse turístico, pelo menos naqueles que tem um pouco de juízo ou não contam com aparato logístico de um Olivetto.
São Paulo – onde moro – não está melhor; morei nos anos 70 nas proximidades da hoje “crocolandia” – vinha do interior e como todo “matuto” fiquei próximo da rodoviária ( antiga).
Hoje, quando vou a algum evento na Sala São Paulo só me falta colocar colete a prova de tudo e, tomar muitos calmantes para passar pela região.
Pena, como descreveu a cidade se deteriorou.
Bom final de semana; inté!
Quanto ao caso da moradora da mansão, conseguiram tirar a paz não só da moradora, mas de todo o entorno… o que não se faz faz por audiência?
Bom final de semana.
inté!
Obrigada pelo apoio!
abração
Morei a minha infância e juventude nos Campos Elíseos que já naquela época se enfeiara e se tornara o que hoje é, mas com uma sensível diferença: moradores se conheciam, uns sabiam o que os outros eram e vice-versa e todos viviam em relativa harmonia, a vida seguindo sem altos percalços.
Faz uns cinco anos voltei ao bairro, às 10 horas da manhã, e resolvi caminhar pelas ruas que tanto conhecia, matando as saudades de um tempo.
Fiquei horrorizada com espaços literalmente tomados dos drogados, ruas inteiras – ingênua, até achei que era dia de feira…
Foi uma das últimas vezes que fui à Sala São Paulo.
Parece que hoje já existe um caminho seguro entre a Sala e o Metrô para quem aprecia música de qualidade mas que não dispõe de veículo próprio. Foi o que ouvi dizer, ainda não criei coragem para conferir.
O descaso das autoridades em frequentes governos não levou em conta ainda hoje que o centro da cidade devidamente revitalizado é um pote de ouro e que todos temos a ganhar com tal interesse.
Em qualquer outro lugar do mundo a rua Barão de Campinas teria um museu: ali no número 35 nasceu e viveu Antônio de Alcântara Machado, escritor modernista que descreveu à perfeição usos e costumes da nossa população, mais exatamente a dos “oriundi”.
Mas estamos em São Paulo.
Amo minha cidade, não a trocaria por nenhum outro lugar, menos ainda Rio de Janeiro.
Mas é inegável que a incompetência e o descaso de sucessivas autoridades estão destruindo minha cidade.