“Escolha moral é para quem não tem fome”. Por Myrthes Suplicy Vieira
… proponho que você reflita sobre qual seria sua escolha caso estivesse na mesma situação das pessoas que se viram forçadas a abandonar seus princípios e valores morais para não ver sua família morrer de fome…
Você concorda com essa afirmação? Pense um pouco: se, por um lado, ela explica por que o furto famélico encontra muitas vezes uma jurisprudência de tolerância e até de não-punição, por outro, pode servir de argumento para, por exemplo, justificar a reeleição de Bolsonaro, diante do pacote de bondades que ele acaba de implementar com o auxílio luxuoso do Centrão. Mesmo que os beneficiados estejam profundamente insatisfeitos com os atos de seu governo e condenem vigorosamente a defesa que ele faz da compra de armas em vez do feijão.
Antes de esclarecer quem foi que disse essa frase, proponho que você reflita sobre qual seria sua escolha caso estivesse na mesma situação das pessoas que se viram forçadas a abandonar seus princípios e valores morais para não ver sua família morrer de fome. Se você acha que está imune por ser uma “pessoa de bem”, incorruptível, que está acima das paixões humanas mais comezinhas, detentora de uma postura ética inabalável quaisquer que sejam as circunstâncias externas, eu o convido a pensar duas vezes. Responder com orgulho, dizendo que preferiria morrer de fome a se dobrar à tentação de roubar um pedaço de carne, um pacote de arroz, pão ou leite, revirar latas de lixo ou correr atrás de um caminhão para pegar ossos descartados, é se atribuir uma natureza essencialmente angelical – ou, pior, divina – mas que, em nenhuma hipótese, guarda relação com a frágil e imperfeita condição humana.
Absolutamente tudo já foi dito a respeito dos problemas cognitivos, disciplinares, diplomáticos e administrativos do ex-capitão. É chegada a hora de analisarmos com coragem o perfil de seus eleitores em potencial. Tradicionalmente, os eleitores do Nordeste e de outras áreas carentes da periferia do país foram acusados de serem os responsáveis pela manutenção de oligarquias perversas no poder, por aceitarem cair na armadilha do voto de cabresto, em troca de uma dentadura nova ou um par de alpargatas. Agora, num cenário desolador de pandemia, desemprego, redução de poder aquisitivo e desesperança entre os mais jovens, são os eleitores ‘nem-nem’ [que não querem a volta de Lula nem a reeleição de Bolsonaro] os mais propensos a mudar sua intenção de voto e cristãmente oferecer a outra face e dar uma segunda chance ao Anticristo em pessoa, imaginando que ele saberá finalmente orientar sua reeleição para o atendimento das demandas mais primárias do povo sofrido e contemplá-lo com novas benesses. Ao menos é isso o que indicam as mais recentes pesquisas eleitorais.
É preciso admitir: somos todos tão reféns da violência política e ideológica obscurantista de Bolsonaro quanto as mulheres vítimas de violência doméstica que decidem voltar para os braços de seus agressores alegando que “ruim com ele, pior sem ele”. E, parafraseando meu colega de profissão, Gasparetto, só se desilude quem se ilude.
Será a fome uma força-motriz superior à comoção pela morte de mais de 670 mil brasileiros e à indignação com o brutal retrocesso da democracia brasileira, além do descarado desmonte dos projetos de proteção ao meio ambiente e da educação de qualidade que poderiam garantir nosso futuro? Se você pensa que sim, lembre-se que a fome já ameaça a vida de 33 milhões de conterrâneos e coloca contra a parede 61 milhões que vivem em insegurança alimentar. Se essa turma toda resolver, de fato, abrir mão de uma escolha moral nas próximas eleições, estaremos definitivamente fritos. Por isso, antes de começar a atacar nas redes sociais esse “povinho alienado”, o gado bolsonarista, os evangélicos fundamentalistas, e reclamar pela enésima vez que “brasileiro não sabe votar”, reflita sobre os fatores estruturais que deram origem à nossa tenebrosa desigualdade social e a mantêm incólume até hoje. E pare de poupar os farialimers, os empresários ligados ao agronegócio e os economistas que colocam o equilíbrio fiscal acima do bem-estar e da qualidade de vida da população.
Identificar seu ‘lugar de fala’ na análise do quadro eleitoral pode ser uma providência necessária mas não suficiente. Há uma série de tarefas mais sérias e mais urgentes a realizar antes de outubro próximo. A primeira delas, me parece, é que você se desvie das polêmicas externas de ocasião e encare a frio de que forma você historicamente contribuiu com seu voto para perpetuar a eleição de pretensos salvadores da pátria de todas as colorações ideológicas.
Aprender a distinguir as consequências de votar em um nome forte o bastante para se opor “a tudo o que está aí” e da escolha consciente de um projeto de país talvez seja a tarefa mais difícil que o aguarda. Se a terceira via não lhe apetece porque você não quer “perder o voto”, pense que mais uma vez você está impedindo a renovação dos quadros políticos nacionais e empurrando todo mundo a fazer mais uma impossível “escolha de Sofia”. Embora a jornada de mapeamento honesto de suas próprias motivações seja longa e dolorosa, é fundamental que você entenda que eleição presidencial não é o mesmo que votar em um ‘reality-show’ para decidir quem fica e quem sai.
Achar que democracia é apenas depositar seu voto na urna, lavar as mãos e voltar para casa à espera do milagre da multiplicação dos pães é a forma mais segura de fomentar o desastre.
Portanto, se você não passa fome (ainda), a única escolha legitima que tem a fazer é se juntar às forças de oposição para promover a conscientização – de famintos e não-famintos – a respeito do que é cidadania responsável. Deixar-se levar por falácias do tipo “É tudo farinha do mesmo saco” não ajuda a fazer avançar nossa carcomida República.
Ah, já ia me esquecendo de contar que não foi nenhum economista, sociólogo, psicólogo ou filósofo que disse a frase acima. Ela apareceu de surpresa, no meio do capítulo final de uma novela, na boca do protagonista, um indivíduo que hesitava o tempo todo entre assumir de vez sua vilania ou fazer acreditar que era apenas vítima impotente de um destino cruel.
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Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
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Cara Myrthes. O ato de classificar candidatos diferentes como “farinha do mesmo saco” é um vício nacional no Brasil – existente noutros países, é verdade, embora em proporção muito menor. Entre os brasileiros, não apenas serve para esconder os sinais diacríticos de cada candidato, mas também para evidenciar o medo de tentar identificá-los a partir de suas histórias e realizações – ou seja, algo mais sólido do que apenas as próprias crenças de quem julga. Julgar a todos “farinha do mesmo saco” advém, por isso mesmo, não exatamente de uma preguiça mental de olhar o outro para entendê-lo, mas, bem ao contrário, de uma ocultação forçada, exatamente para que não se possa vê-lo. É o que permite a interpretação tendenciosa, ideologicamente orientada e sempre disposta ao erro intencional. Note, p. ex., que até hoje há quem espalhe por aí a ideia de que Lula quer censurar a imprensa – ou seja, que é igual ao capitão, farinha do mesmo saco… E, no entanto, em oito anos de governo Lula, quem disso o acusa hoje parece não conseguir se lembrar de uma única ocasião em que ele tenha sequer tentado censurar a imprensa, de fato. E não se lembra por uma razão simples: Lula nunca fez isso (mesmo que, vez por outra, falando aos seus adoradores, tenha-lhes dito algo que nem ele define, o tal “controle social da mídia”, uma bobagem que seu partido não leva a sério, e mesmo Dilma, a especialista da casa em produzir curiosidades, nunca praticou nem cogitou em seu governo). Enfim, minha cara, essa mania de identificar tudo numa mesma farinha, mais comum entre eleitores menos lustrados, decorre não apenas da incapacidade destes para se desfazer de crenças vagamente políticas, mas também do medo da perda de um mundo eventualmente ruim, mas conhecido, que seria substituído por outro, um mundo no qual os valores já não serão os mesmos, os objetivos intentados pela política já não serão os mesmos, os atores, o espetáculo e o palco serão outros. O movimento da mudança, qualquer mudança, como se sabe, é sempre emocionalmente custoso e empiricamente trabalhoso. Resta-nos esperar que a coragem vença o medo e que a esperança de um mundo apenas um pouquinho melhor vença o imobilismo. (De fato, é esse imobilismo que faz de muitos eleitores, a seu modo, também “farinha do mesmo saco”.)
Um abraço. É sempre bom lê-la.