Reescrevendo o passado. Por José Horta Manzano
Benito Mussolini (1883-1945) foi o criador e chefe supremo do fascismo, regime personalista e autoritário que vigorou na Itália de 1922 a 1945.
Sua entrada na vida adulta não foi gloriosa. Aos 19 anos, saiu da Itália para fugir do serviço militar obrigatório. Foi parar na Suíça, onde viveu dois anos durante os quais levou vida agitada e sobreviveu de expedientes. Morou em diversas cidades. Trabalhou de pedreiro, ajudante de obras, balconista. Chegou a ser preso por vadiagem.
Por curto período, tomou aulas na Universidade de Lausanne. Só voltou à Itália quando, por ocasião do nascimento do príncipe herdeiro, uma anistia geral foi concedida. O ditador subiu na vida, tornou-se poderoso e conhecido, mas manteve aquela aura sulfurosa e aquela cara de poucos amigos.
Corria o ano de 1937. Num descuido que viria a dar muito que falar, a Universidade de Lausanne decidiu outorgar ao ditador (e ex-aluno) um diploma de doutor honoris causa.
O que tinha de acontecer, aconteceu. Sua aliança com Hitler conduziu o povo italiano à desgraça de uma guerra perdida, milhões de mortos e um país destruído. Mussolini morreu de morte violenta e passou para o lado sombrio da História. Apesar disso, o doutorado suíço nunca lhe foi cassado.
Nos últimos 75 anos, o diploma conferido ao antigo ditador “por motivo de honra” incomodou um bocado. Não foram poucos os que preferiam que que a homenagem lhe fosse retirada. Mas não era chegado o tempo de decidir. Nestes dias em que o “politicamente correto” se impõe, não foi mais possível adiar.
A direção da universidade encarregou um grupo de trabalho interno, composto por quinze integrantes oriundos de sete diferentes faculdades, de se debruçar sobre a questão. Depois de dois anos de reflexão, a comissão entregou suas recomendações num relatório de 29 páginas. Saiu na sexta-feira que passou. As conclusões são surpreendentes.
“O grupo de trabalho considera que a outorga do doutourado ‘honoris causa’ a Benito Mussolini constituiu um erro grave cometido pelas instâncias universitárias e políticas da época. Esse título constitui a legitimação de um regime criminoso e de sua ideologia. Recomenda-se à Universidade de Lausanne reconhecer e assumir esse fato.”
A universidade aceitou a recomendação da comissão, e reconheceu ter falhado em sua missão e “ter desvirtuado os valores acadêmicos fundados sobre o respeito do indivíduo e a liberdade de pensamento”.
No entanto, em vez de renegar ou apagar esse episódio, optou por deixá-lo “servir de advertência permanente para possíveis derivas ideológicas que possam vir a vitimar a sociedade”. Em resumo, um banimento equivaleria a bloquear o debate democrático.
Talvez os que hoje pregam tratar personagens do passado como se nunca tivessem existido devessem se inspirar na decisão da Universidade de Lausanne, que me parece cheia de sabedoria.
O título foi conferido ao ditador, isso é ponto pacífico. Nada nem ninguém será capaz de apagar esse fato. Ocultá-lo e fingir que nunca existiu não é a melhor solução. Portanto, melhor será deixá-lo intacto para servir de exemplo de um erro que nunca mais se deverá repetir.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Nada é coincidência.
Acabei de adquirir os dois primeiros volumes traduzidos da trilogia sobre a vida de Mussolini de autoria de Antonio Scurati – o primeiro, um calhamaço de quase 900 páginas e o segundo por volta de 600. O terceiro ainda não está à venda.
Figura realmente controversa – amado por uns, odiado por outros – sua trajetória sempre oferece Interpretações. Indiferença, nunca.