A puta favorita do pai de familia tradicional. Por Júlia V. Kurtz
… O conservadorismo brasileiro é a puta favorita do pai da família tradicional …
Exclusivo para o Chumbo Gordo
Definições claras do que seria, afinal, esse tal de “conservadorismo”, são difíceis de encontrar. Não porque elas não existam, pelo contrário; é que não é interesse de um certo grupo de pressão que esses conceitos sejam amplamente conhecidos. Esse grupo, quem diria, é formado pelos próprios conservadores.
O motivo pelo qual isso acontece é simples: ao juntar o significado ao significante (se me permitem um pouco de semiótica), fica definido não só o que a palavra significa como também o que ela não é. E isso vai ao contrário do desejado pela força política no governo. É melhor que conservadorismo seja algo diferente para cada interlocutor, que assim se sente justificado para defender ideias vagas usando nada menos que sua bílis trancafiada.
Isso não nos basta, claro. Optemos, portanto, pela definição dada por Roger Scruton em “Como ser um conservador”. A escolha é pertinente, uma vez que Scruton é usado como uma das referências do pensamento conservador e se vira no túmulo toda vez que isso ocorre.
Para o filósofo inglês, o conservadorismo é um reconhecimento de que a construção de conhecimento popular tem validade, por mais que seja baseada em evidência empírica. Para Scruton, as inúmeras gerações que viveram antes de nós se relacionaram com o ambiente e aprenderam com ele. As informações que tinham alguma utilidade foram filtradas e transmitidas para a próxima geração.
E essas novas pessoas, de posse desse conhecimento herdado, interagiam com o ambiente e aprenderam novas lições, que foram confrontados com o que já se sabia para formar uma nova conclusão. Esta geração passa para a seguinte aquilo que sobreviveu ao teste do tempo, e assim ocorre sucessivamente.
Para Scruton, portanto, o conhecimento coloquial, herdado, é a lição sobrevivente de nossos antepassados e cuja transmissão permitiu nossa sobrevivência como espécie. Vemos isso em contos de fadas, lendas, mitos e folclore.
Isso não significa, entretanto, que o conhecimento herdado seja superior ao novo, pelo contrário. A visão do filósofo é que novos conhecimentos não são melhores apenas por ser novos, e precisam ser confrontados com a experiência adquirida em busca daquilo que é superior.
O melhor, nesse contexto, é aquilo que se prova mais útil para a sobrevivência das próximas gerações. O conservadorismo, nessa óptica, é a lembrança da importância do acúmulo de conhecimento na História e, nesse sentido, é contrário ao princípio de que algo novo sempre é melhor que o antigo.
Também não é a crença de que as coisas antigas eram melhores e as novidades devem sempre ser descartadas. Fosse assim, seríamos nômades caçando e vivendo de nossas mãos apenas. Novidades como fogo e ferramentas seriam vistas como uma ameaça, expressadas em nosso momento político com uma frase semelhante a “isso é coisa de comunista!”.
O conservadorismo, portanto, é a crença de que as ideias sejam analisadas pelo que elas são, sem preconceitos, e que a melhor delas, sim, seja transmitida. Essa, aliás, é a definição original do termo “meme” antes de ser abocanhado e regurgitado pela internet.
Conservadorismo à brasileira
O dito conservadorismo brasileiro surgiu como uma alternativa ao poder de turno. E o antagonismo, aqui, não ocorre em termos de ideias e sim de nomenclatura. Se o governo petista fosse identificado com a direita, Bolsonaro hoje cantaria as glórias do socialismo.
Esta ideia é, essencialmente, mais política do que filosófica. O grande guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, já dizia que o segredo de ganhar uma discussão é nunca apresentar ideias e se limitar a atacar as propostas do oponente. A grande tríade de tese, antítese e síntese – que integra o argumento de Scruton – é jogada fora. Não há mais o amálgama de propostas e sim a inevitável derrota do oponente, seja porque ele desistiu de enfrentar a não-lógica ou rebaixou-se ao nível de usá-la.
Qualquer pessoa que já tenha sido vítima de linchamento digital conhece a tática: várias pessoas a ofendendo porque você está errado, nenhuma explicando os motivos que as levam a dizer isso, ninguém defendendo o que seria, então, “o jeito certo”.
É por isso que não defender o que seria o tal conservadorismo é uma tática em si. Ao fazer isso, grupos extremistas se blindam contra críticas, ao mesmo tempo em que ganham uma arma poderosa: a capacidade de denunciar, a seu bel prazer, quem é e quem não é traidor da causa.
A tática vem sendo usada desde 2019, quando vários integrantes importantes do governo foram expulsos, acusados de ser agentes infiltrados. Nomes como Gustavo Bebbiano, o general Santos Cruz e o ex-relevante Sérgio Moro integram a lista, e muitos dissidentes foram expulsos nos níveis baixos de militância por não controlar o santo graal da definição do termo.
O conservadorismo brasileiro nada mais é que um manto para esconder as práticas mais retrógradas de nossa política, misturados a um autoritarismo suprapolítico como nunca se viu antes em território nacional (perguntada certa feita se as similaridades entre o olavismo e as seitas religiosas como a Igreja da Unificação, Heloísa de Carvalho, filha dissidente do guru, não hesitou em dizer que isso não é coincidência).
Estudiosos apontam que uma das características principais do líder de uma seita é a capacidade de controlar o vocabulário, e tanto Olavo como Bolsonaro lutaram por anos por esse poder.
No início de 2019, o guru divulgou um édito papal na qual denunciava Carla Zambelli e outros congressistas como agentes comunistas disfarçados após irem à China a convite do governo do país. A deputada, assustada com a possibilidade de expulsão, ajoelhou-se perante a cartilha e jurou lealdade renovada para ser admitida.
Este é apenas um sintoma do cabo de guerra entre o guru e o presidente, vendido por este último, uma vez que o adversário não só não tinha poder político real como morreu poucos anos depois.
O medo de expulsão é tão grande que, em 2019, quando se debatia a existência do juiz de garantias, um certo advogado bolsonarista escreveu um texto defendendo a proposta, mas fez questão de retirá-lo do ar e pedir desculpas uma vez que o zeitgeist político decidiu que a ideia era ruim.
A consistência das definições é tão grande que o Bolsonaro de 2022 não passaria nos critérios do Bolsonaro de 2018. O suposto liberal que reclama dos lucros de empresas e o cunhador da frase “mais Brasil e menos Brasília” que queria centralizar o não-combate à covid-19 ao executivo nacional seriam, poucos anos antes, agentes do tal comunismo.
A lição, meus caros, é que o Bolsonaro de hoje está mais certo do que o Bolsonaro de ontem e somente os experts em prever o temperamento do presidente a cada manhã sobrevivem nesse caos apolítico. Eles e, claro, aqueles que não têm nada a perder com a queda do Bolsonarismo.
Brincando de casinha no curral do Centrão
Se o bolsonarismo fosse um movimento político que prezasse pela leitura, atentaria ao clássico “O Caminho da Servidão”, do Nobel em Economia Friedrich A. Hayek, que alerta, já em sua dedicatória, a existência de liberais de direita e de esquerda.
Luminário do liberalismo clássico do século XIX, Hayek critica a posição fechada dos conservadores britânicos da época, que acusa de ser pró-estado. Vale lembrar que a definição de conservadores de Hayek é anterior e diferente da de Scruton.
Na visão expressa no livro, o economista defende o que seria o caminho para a inovação, que é deixar que novas ideias entrem no mercado e que aquelas antiquadas desapareçam. É o que a humanidade tenta fazer até hoje, sempre confrontando as concentrações de poder que farão de tudo para não largar o osso.
Um exemplo mais recente é a introdução de serviços de transporte como o Uber, que simplificaram a burocracia da movimentação urbana e que foram recebidos com raiva pelos sindicatos locais de taxistas, furiosos com a perda de monopólio.
Na época em que Olavo de Carvalho era anti-autoritarismo (ou seja, antes de suas ideias serem sujeitas ao teste prático), o guru já dissera que países como a União Soviética tinham a capacidade de acabar com a fome (se isso é verdade, aí é outra história) mas preferia manter a população desesperada com comida porque um povo alimentado e com as necessidades satisfeitas tem tempo livre suficiente para ter aspirações políticas.
E, goste-se ou não do governo Lula, é preciso admitir que foi durante essa gestão que muitas pessoas antes excluídas da lista de alimentados já começou a ter aspirações educacionais e – pasmem! – ideias de como mudar o país. Não é à toa que nossa elite reclamava do “pobre no aeroporto” – essa metáfora nefasta que significa a corrosão do sistema histórico de castas que se esconde atrás de nosso suposto iluminismo.
Os coronéis que recheiam nossa literatura continuam vivos e, mesmo que não tenham em seu patrimônio lotes imensos de terra, hoje sobrevivem de seu curral de votos e habitam uma massa disforme de miasma que alcunhamos de Centrão.
Assustados com a popularidade de Lula, pouca resistência ofereceram a suas reformas estruturais (que não são livres de críticas, mas eram contra a essência desse grupo). Foram convencidas (com dinheiro público) a agir contra seus interesses. Não é de se estranhar que essas mesmas pessoas tenham traído o governo e apeado Dilma Rousseff do poder.
Findada a era petista, era necessário reaver o controle feudal do nosso coronelismo político em áreas do governo. E o artifício político perfeito para isso era Bolsonaro, alguém com muitos votos e poucas ideias, que achava que o erro de Lula foi ter pago o Congresso; e um ano depois fez a mesma coisa.
O pacto entre o Congresso e o governo é simples: você pode continuar brincando de governar, desde que nos dê acesso aos cofres e a nossos feudos. Bolsonaro pode aparentar que manda em algo, desde que não interfira nos projetos de seus novos donos – aqueles que o ameaçam todos os dias com o apoio político necessário ao impeachment.
Toda quinta-feira, o presidente liga sua webcam presidencial e, na biblioteca de sua residência oficial (cujos livros, dizem, não são abertos há três anos), vocifera contra inimigos imaginários, tentando afastar a população da conclusão inevitável de que os problemas do país são agravados por sua incompetência, além de algo ainda mais sinistro: que o presidente mais macho de nossa história transformou o conservadorismo brasileiro – ele incluso – na putinha favorita de nossos coronéis do voto.
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*Júlia V. Kurtz – Editora-chefe do BeInCrypto Brasil, com dez anos de experiência na cobertura de tecnologia. Criou uma galeria NFT com fotos de seus gatos. Tem passagens na Globo, Gazeta do Povo e no Portal UOL.