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A régua. Por Myrthes Suplicy Vieira

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“O homem é a medida de todas as coisas”

Protágoras

Bolsonaro ouviu o canto do galo do poder absolutista mas até hoje não descobriu de onde ele vem, nem que tipo de vocalização lhe seria necessária para reproduzi-lo com sucesso por aqui. Escutou o canto da sereia, mas acreditando que não passava de singela homenagem de seus seguidores fardados, desatou-se do mastro e jogou-se atabalhoadamente na água.

Freud e Paulo Freire

Tivesse algum dia se dado ao trabalho de esmiuçar o pensamento desse e de outros filósofos da antiguidade, saberia que tudo é relativo, inclusive e principalmente sua autoridade. Imediatista, megalomaníaco, voluntarista e incapaz de pensamento crítico, ele confunde alhos com bugalhos e costuma tomar a parte pelo todo – provavelmente entenderia a palavra homem como simples indicador de gênero. Acreditando ser ele próprio medida de tudo à sua volta, julga que o Brasil e o mundo deveriam se curvar à sua paralela noção de realidade, aos seus princípios morais (ou falta deles), às suas vontades e ambições.

Tivesse lido Freud alguma vez, saberia que seu psiquismo está fixado na fase de onipotência típica de Sua Majestade, o Bebê. Entenderia que nessa etapa primitiva do desenvolvimento psíquico não existe mundo fora dele e a mãe (pátria) é apenas um seio que jorra leite sempre que requisitado. Tudo leva a crer que, por circunstâncias familiares adversas (mãe omissa e pai castrador), Bolsonaro jamais superou a fase do narcisismo infantil e regride continuamente à ilusão de poder inquestionável sempre que se sente ameaçado por alguma autoridade externa.

Tivesse ido além do título do livro de Paulo Freire, compreenderia que “se a educação não é libertária, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Se educar é frustrar, como postulam os especialistas, ele nunca se deixou educar para a cidadania. Sua formação militar o ajudou a radicalizar a noção de que toda obediência tem de ser necessariamente cega, acrítica: afinal, soldados não são feitos para pensar. No entanto, num arroubo juvenil e ainda apostando em sua superior autoridade moral, achou um dia que poderia subverter o dogma supremo da hierarquia militar. A humilhação máxima que sofreu ao ser expulso do exército por transgressão marcou sua personalidade para todo o sempre.

A ferida narcísica

A profunda ferida narcísica que se abriu em seu peito e o ressentimento acumulado desde então tornaram-se a marca registrada de sua atuação no mundo político e transformaram o caráter de virilidade tóxica – compensatória de sua impotência – em marco distintivo do bolsonarismo. Dando sequência ao seu complexo de Édipo embutido e jamais resolvido, Bolsonaro e bolsonaristas continuam tentando a todo custo matar o Pai Supremo, simbolicamente representado pelo Judiciário e encarnado na figura de Alexandre de Moraes, antes que sejam eles próprios castrados.

Desde que assumiu o poder em 2019, ele se comporta literalmente como se tivesse comprado a fazenda Brasil de porteira fechada. Dono de todas as consciências, ele não se cansa de instituir como regra que a ninguém é dado enxergar o mundo com outras cores ou rebelar-se contra seus éditos, uma vez que “autorizado” por seu’ povo e seu’ exército.

O STF e a Constituição

Professor de Deus, ele vem dando aulas diárias de constitucionalidade aos ministros do Supremo. Exibe em tom ameaçador seu douto saber jurídico, abordando temas de alta relevância para a democracia e o estado de direito, afetos principalmente ao conceito de liberdade de expressão, mas se aventurando também em questões secundárias, como a demarcação e exploração de terras indígenas, os limites de ação da Petrobrás na determinação de preços e as exigências legais imprescindíveis para a realização de eleições limpas e auditáveis.

Pontifica livremente sobre critérios de inocência e culpabilidade de parlamentares e membros do seu governo, sobre liberdade de imprensa, sobre equilíbrio e autonomia dos três Poderes da República, sobre o “interesse público” da não-adoção de medidas que beneficiariam minorias e sobre tudo o que causa “legítima comoção” na população brasileira, como se ela estivesse contida como um todo no seu grupinho de aliados e apoiadores.

Meu reino, meu gozo

Reinar sozinho, sem se sentir constrangido pelos tais pesos e contrapesos democráticos, seria sua única possibilidade de gozo orgástico – e ele sabe que nunca o poderá atingir graciosamente. Para chegar lá, seria preciso ter capacidade de entrega, abrir mão do desejo de ser o condutor e deixar-se ser conduzido no balé amoroso, o que lhe é impensável. Se não vai por bem, deve raciocinar, então é legítimo que se faça pelo estupro das instituições democráticas.

Mas não lhe basta o poder secular. Precisa também fazer seus apóstolos acreditarem que ele possui traços divinos de liderança carismática: a obsessão pela verdade que liberta, o pendor pastoral (“Eu sou, realmente, a Constituição”), acreditar-se ungido pelo próprio Deus para conduzir os destinos da nação.

Cloroquina e ivermectina

Como iluminado defensor das liberdades individuais, transgredir é com ele mesmo. Quanto mais normas legais forem quebradas em sua gestão, mais sente seu poder fortalecido e reforçada a crença de que ele é a única régua admissível para medir acertos e erros na condução dos negócios públicos – como transformar reserva natural em polo turístico, defender o trabalho infantil, defender a tortura, defender o excludente de ilicitude para policiais e militares, armar a população civil ou eliminar os radares de trânsito.

Na sua visão, é mera questão de tempo para que a OMS declare oficialmente que as vacinas são, de fato, experimentais e que foi um erro usá-las para substituir a cloroquina e a ivermectina, já que, além de custarem muito caro, podem ter efeitos colaterais inaceitáveis, como causar Aids em adolescentes ou miocardite em crianças, ou ainda conter chips para transformar pessoas em robôs. Ou para que o Supremo declare que, “dentro das quatro linhas da Constituição”, só ele teria o direito de decretar confinamento na pandemia, e interdite governadores e prefeitos que não seguissem a orientação federal. Sociólogos, filósofos e historiadores também se renderão um dia ao fato de que o nazismo foi um movimento de esquerda e que é possível perdoar o Holocausto mas não esquecê-lo, uma vez que “quem esquece seu passado não tem futuro”.

O psiquiatra aprendiz

Sua mais recente – e estupefaciente – incursão foi no universo da psiquiatria. Demonstrando sua expertise na área de psicopatologia aplicada à política, alertou para os eleitores ainda indecisos: só um “imbecil ou psicopata” defende a volta do AI-5.

Campeão mundial de atos falhos, resta saber se ele mais uma vez se autorrotulou sem querer (“O chefe do executivo mente”) ou se a crítica velada ao comportamento padrão de seus apoiadores mais exaltados foi só uma maneira de recriminá-los por vazarem antes da hora a intenção de golpe caso fracasse nas urnas. Ou talvez ainda ele tenha imaginado que, se vencedoras, as hostes de esquerda vão tentar instituir a ditadura do proletariado e, assim, roubar dele a bandeira do fechamento do Congresso e do STF.

Vale conferir com o psiquiatra-chefe de plantão após a abertura das urnas.

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 Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

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