Arrombando a cerca. Por Silvia Zaclis
… Estão derrubando a cerca. É o seguinte: se eu acho errado matar alguém, devo tomar alguns cuidados. Não vou comprar e muito menos portar armas, vou evitar brigas que possam levar às últimas consequências, vou ficar longe de gente que me desperta ganas assassinas…
Estão derrubando a cerca.
É o seguinte: se eu acho errado matar alguém, devo tomar alguns cuidados. Não vou comprar e muito menos portar armas, vou evitar brigas que possam levar às últimas consequências, vou ficar longe de gente que me desperta ganas assassinas; assim vou montando uma cerca que me mantenha a distância mais ou menos segura de matar alguém. Tem funcionado bem, funciona para quase qualquer coisa.
A gente vai tecendo as cercas à medida em que nossas posturas se tornem mais firmes, que saibamos a pessoa que queremos ser.
Pois tenho a sensação de que estão derrubando cercas; não as minhas, cada um é responsável por sua própria construção de caráter.
O que preocupa é o arrombamento que vejo acontecer exatamente em Brasília, local que, pela lógica de ser a capital de nosso grande país, deveria reunir pessoas capazes de expressar pensamentos interessantes, ou que pelo menos demonstrassem um comportamento minimamente adequado ao posto para o qual foram eleitos ou contratados – e pagos com dinheiro público (ou seja, dinheiro do público, que somos nós; vale lembrar que o governo não administra capital próprio, o governo governa com o nosso dinheiro).
…Quem, em sã consciência (?), brincaria com a tortura provocada por um bando assustador a uma adolescente que além de tudo estava grávida? Não há desculpa, não deveria haver leniência. É um acinte contra todos nós, e não tem perdão…
A cada dia nos tornamos menores, menos relevantes para o mundo e para nós mesmos; Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro tem complexo de vira-latas. Eu, na minha ignorância histórica e política, sendo apenas cidadã atônita, sinto que estamos nos tornando um povo sem pedigree.
Um país cuja espinha dorsal está cada vez mais elástica no movimento de se curvar ante os piores instintos e as piores intenções do grupo que supostamente deveria nos governar.
Hoje tive ganas de fazer tamanco ao alvo (meu marido conta que a mãe dele era especialista) ao ver a postagem de um dos filhos do presidente. Ele fez um comentário de imenso mau gosto a respeito da jornalista Miriam Leitão.
Por falta de tamancos, posso sugerir lavar a boca com sabão – mas como é que se lava uma alma? O moço, que é deputado, derrubou todas as cercas que o protegem da patifaria.
Quem, em sã consciência (?), brincaria com a tortura provocada por um bando assustador a uma adolescente que além de tudo estava grávida? Não há desculpa, não deveria haver leniência. É um acinte contra todos nós, e não tem perdão. Se as autoridades estão derrubando cercas tão básicas à vida civilizada, cabe a cada um de nós impedir, pelo voto, que elas tenham mais oportunidades de nos desrespeitar.
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SILVIA ZACLIS – É JORNALISTA