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O Incor e a USP resistem, mas até quando? Por Charles Mady

Interesses privados se infiltram cada vez mais nas universidades públicas

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PUBLICADO ORIGINALMENTE EM TENDÊNCIAS/DEBATES, 
FOLHA DE S. PAULO, EDIÇÃO DE 6 DE ABRIL DE 2022

O Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, serve à sociedade há 45 anos, de forma exemplar, dentro do possível. Apesar das dificuldades políticas e econômicas, conseguiu manter alto nível acadêmico, graças a seus recursos humanos, pois, em bom número, demonstram espírito institucional invejável. É um patrimônio moral sólido, que representa alicerce poderoso. Em certas ocasiões esse espírito se abalou, enfraquecendo esse sentimento. Mas o fato de ser hospital da USP gerou força na manutenção de determinados princípios, não sucumbindo ao utilitarismo endêmico. Houve fases de descrédito e desesperança, mas a formação institucional sólida manteve a excelência do serviço. Gestões suspeitas, com interesses outros que não os acadêmicos, não conseguiram extinguir esse sentimento. Diminuir, talvez.

Nasceu desacreditado, pois julgavam que se tratava de um empreendimento muito grande, para apenas uma especialidade. Sob o comando de E. J. Zerbini e L. V. Décourt, catedráticos da USP e fundadores da instituição, iniciou-se um trabalho de construção universitária único em nossa história. Reuniram recursos humanos de alto padrão, no início em número limitado, por problemas econômicos. Jocosamente, críticos da iniciativa nos chamaram de Instituto do Pericárdio, que é a membrana que reveste o coração, pois não iríamos ter condições de tratar o restante. Como visionários, e conscientes da coisa pública, algo raro hoje em dia, colocaram esse projeto como motivo de vida. Essa cultura era presente nos alunos e professores da USP. Receberam formação profissional, e sobretudo humana, sem as quais não teriam realizado o projeto.

Esses professores tiveram a ideia de criar uma fundação para obtenção dos fundos necessários. Entendemos as críticas sobre as relações entre o público e o privado, com muitas das quais concordamos, mas era a única forma de levar o Incor adiante. Houve problemas sérios em determinadas ocasiões, todos solucionados de forma legal e construtiva. Mas o toque de genialidade foi o de construir um organograma de alto padrão, multiprofissional, dando responsabilidades para cada grupo desenvolver atividades exigidas pela USP e pelo HC. Havia talentos em todos os setores. Pode-se dizer que o Incor nasceu e cresceu graças à qualidade de seus recursos humanos, item fundamental em qualquer empreendimento que queira ter sucesso. Atingimos resultados excelentes, mesmo pobres materialmente. O ser humano, e não equipamentos de última geração, foi o fator determinante do sucesso.

Ter os selos USP e HC foi fundamental para obter esses resultados. Sem essa mentalidade acadêmica, provavelmente os resultados seriam outros. É o exemplo do que uma universidade pública pode realizar. Não adianta apenas o poder econômico, que hoje está cada vez mais infiltrado na saúde e educação. A credibilidade leva tempo para surgir, e não tem preço. Apesar do sucateamento que criminosamente nos atingiu, esse perfil nos manteve em pé.

Mas os interesses privados se infiltram cada vez mais nas universidades públicas, criando-se conflitos de interesses cada vez maiores. Empresas privadas disputam profissionais titulados com afinco, pois sabem que tipo de retorno terão. Essa mudança de cultura é perigosa para a sobrevivência das academias. A evasão de cérebros para o exterior complica ainda mais essa situação maligna. Para onde estamos caminhando? Para a decadência do público? Qual o tempo que esses estrelados terão para se dedicar à vida acadêmica?

A USP resistiu até agora. Mas até quando? Mudanças de critérios de escolha, além de regras rígidas sobre o desempenho profissional, deveriam ser discutidas de forma séria. Essa evasão de cérebros está aumentando, tendendo a se agravar. Até quando? É o privado utilizando o público, comum em nossa “democracia”, para o sucesso de suas empresas. O que estas dão de retorno ao público? Esta pandemia nos mostrou o quanto o SUS foi, e é, importante para o povo. O HC, apesar de pobre, deu exemplo de eficiência, resultado do trabalho dedicado de profissionais institucionais.

Já as empresas privadas tiveram lucros históricos com essa tempestade perfeita criada pelo vírus e pelos políticos. Estes representam o que há de pior na sociedade, e assim o demonstraram nesta imensa crise. Seus perfis, histórica e culturalmente corruptos, ficaram muito evidentes em uma hora de extrema necessidade. Acho que nada aprenderam com essa desgraça. O preço pago pela sociedade foi imenso, incalculável. E continuará a ser pago. Temo que esse espírito institucional universitário também esteja sendo perdido com o tempo.

Durante esta tragédia, a USP, e outras universidades públicas, demonstraram ainda sua força, com a quantidade e qualidade de informações científicas divulgadas. Não apenas agora, os resultados das pesquisas são impressionantes. Cito o Incor como exemplo. Em 1978 e 1979, tivemos três trabalhos publicados em revistas científicas internacionais. Em 2021 foram 617, aumentando ano após ano. Este fato ilustra bem aquela cultura que a USP, como exemplo do público, tenta incutir. Apesar das agressões sofridas, manteve a excelência.

Até quando? Temo que a erosão desses princípios, lenta, mas perene, abale o patrimônio intelectual que é a USP, e também seus pares, e toda a estrutura de saúde e educação que representam sofra prejuízos irreversíveis.

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–  Charles Mady,  Médico e Professor associado do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da USP

Diretor
Unidade Clínica de Miocardiopatias e Doenças da Aorta
InCor – HCFMUSP

charles.mady@incor.usp.br

 

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