Alexander Malofeev - jovem pianista russo

Alexander Malofeev - jovem pianista russo

Uma pancada no soft power russo. Por José Horta Manzano

Alexander Malofeev - jovem pianista russo
Alexander Malofeev – jovem pianista russo

O assunto é espinhudo. Em razão de Vladímir Putin ter declarado guerra à Ucrânia e invadido o país, a imagem da Rússia no exterior levou um golpe. Independentemente de quem venha a ser o vencedor do confronto – se houver –, um perdedor está desde já confirmado: a Rússia.

A simpatia ou antipatia que se tem por um país representa um papel importante. A categoria dos que se apresentam no exterior é peça central desse soft power. A dimensão internacional dos artistas e dos esportistas russos é significativa, bem maior do que os 145 milhões de habitantes do país poderiam fazer supor.

Desde que a primeira bomba estourou na Ucrânia, faz pouco mais de um mês, o contingente de russos que se apresentam fora do país passou a ser olhado com desconfiança. Essa suspeição é mais forte justamente nos países em que eles costumam se apresentar com maior frequência.

Cada país tem lidado com o problema a seu modo, sem acerto com aliados e parceiros. No mês passado, os festivais de cinema de Estocolmo (Suécia) e de Glasgow (Escócia) anunciaram ter retirado filmes russos da programação. As películas sofriam de um pecado original: tinham recebido subvenções do Estado russo.

Por seu lado, a Orquestra Sinfônica de Montreal (Canadá) anulou as três apresentações de Alexander Malofeev, pianista-prodígio russo nascido em 2001. O mesmo azar coube a Roman Kosyakov, outro jovem pianista, excluído do Concurso Internacional de Piano de Dublin (Irlanda) pelo fato de ser russo. Em razão da nacionalidade, também os para-atletas russos foram excluídos dos Jogos Paraolímpicos de Pequim.

Embora os artistas e esportistas russos que dão com a cara na porta sejam numerosos, o grande público nem sempre fica sabendo, visto que só os mais conhecidos aparecem na mídia. A lista dos excluídos é bem mais longa do que os que mencionei.

Agora vem a pergunta: é justo fazer pagar, a quem não tem nada a ver com o peixe, o preço da brutal estupidez de Putin? A arquitetura de nosso Direito exclui a expiação coletiva – a culpa é sempre individual, não cabendo a ninguém pagar por crime alheio.

A intenção dos que vetam a apresentação de artistas e esportistas russos carece de eficacidade. Os que impõem a proibição esperam que ela force os prejudicados a tomar partido e condenar publicamente a guerra. Mas acontece que, logo no começo de março, entrou em vigor na Rússia uma lei que permite condenar a até 15 anos de cárcere qualquer um que se posicione contra a Guerra de Putin. O veto aos artistas e esportistas os deixa num beco sem saída. Ainda que, no fundo, fossem contra a guerra, não ousariam declará-lo em voz alta.

Além dessa lei, as consequências para os infelizes podem ser ainda piores. Sob Putin, a Rússia se tornou um Estado ditatorial tão pesado e violento como na era soviética. Nenhuma discordância é tolerada. Toda oposição é reprimida com brutalidade. Caso um artista (ou um esportista) decida declarar-se contrário ao regime, correrá grande risco. Não adianta nem passar a residir no exterior e não mais retornar ao país: os membros de sua família que tiverem ficado na Rússia podem sentir a mão pesada do regime.

Não tenho a pretensão de trazer a solução do problema. A sinuca é de bico. O ideal seria que a Rússia se livrasse do ditador e se tornasse, pela primeira vez em sua longa existência, uma nação democrática. Mas aí já estamos pedindo demais.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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3 thoughts on “Uma pancada no soft power russo. Por José Horta Manzano

  1. Permita-me, caro Manzano, escrever-te de longe – ao lado da minha irmãzinha querida, o que muito me acalma a saudade – para adicionar um item, eventualmente o mais importante, ao conjunto dos efeitos pretendidos dessas punições ora aplicadas. O resultado do boicote a artistas e esportistas russos vai, penso eu, um pouco além das fissuras que instala na imagem internacional do país, fornecendo novos motivos de reprovação indignada à sua própria população. Trata-se de uma guerra não apenas contra a imagem internacional da Rússia, que obviamente se apequena, mas igualmente contra a imagem que dela se tem de dentro, partilhada pelo seu povo, que já se pergunta se o orgulho nacional sobrevive em face do tratamento descortês, quase infantilizante, que seus compatriotas agora recebem em praticamente todo o mundo. A força simbólica que o retorno inglório desses russos cabisbaixos, derrotados por sua própria nacionalidade, tem para uma população já dividida, diante de uma pátria metida numa guerra que não precisava inventar, muito menor perder, e que a empobrece aos olhos de todos, é esmagadora, invencível. Nada derrota um símbolo. Nem um canhão, nem uma propaganda oficial. Hoje, dissolvido entre os russos, há algo de imaterial, espécie de sentimento íntimo, essencial para qualquer povo, em qualquer país, traduzido nos valores do pertencimento nacional comum, na honra coletiva, na partilha de uma história, e que se encontra à deriva exatamente porque outros russos, antes ilustres, outrora idolatrados e respeitados por seus feitos artísticos e esportivos, veem-se agora humilhados pelo banimento, pelo desinteresse do mundo, pela exclusão dele. Para um cidadão russo minimamente informado sobre uma guerra que já tem mais de um mês, é fácil supor que esteja neste momento (à sombra de Putin, claro) perguntando a seus botões: “Quem nos representa no mundo agora? Foram-se nossos músicos do primeiro time da música mundial. Foram-se nossos esportistas que batiam recordes espantosos. Que restou? Putin? Massacres que produzimos contra civis ucranianos inocentes, exibidos mundo afora em horário nobre? Um mundo que aprende mais e mais a se virar sem nosso gás, sem nosso petróleo, sem nossa vodca? O que nos representa agora…?” Absolutamente nada supera a força de um símbolo. E a solidão no mundo já se mostrava um símbolo invencível antes de se tornar um baita problema econômico. Duas tristezas que se unem nunca saem do encontro sem produzir algo novo. Como a união das duas metades de urânio enriquecido que compõem uma bomba atômica. Quem sobrar, conta a história depois.
    Forte abraço.

    1. ¡Buenos dias, doctor!

      Vosmicê tem razão. Mas nem todos raciocinam como vosmicê. Eis por quê.

      Primeiro ponto
      Ao (tentar) reduzir trocas comerciais com a Rússia, o mundo civilizado busca estrangular a economia do país. Imagina-se que um Putin de língua de fora e chapéu na mão se comporte como bom menino e pare de ameaçar vizinhos. Nesse ponto, estamos de acordo.

      Segundo ponto
      Ao boicotar artistas e esportistas russos, esse mesmo mundo civilizado imagina “girar a faca na ferida” (aï! ça fait mal!) e instilar um sentimento de vergonha e de abandono no seio do povo daquele país. Assim agindo, pensam alguns que o povo se revoltará contra os dirigentes.

      Quanto ao efeito do primeiro ponto – as sanções comerciais –, acredito que o mundo civilizado esteja no caminho certo. Contando só as compras de gás e petróleo, calcula-se que a Europa esteja entregando diariamente 800 milhões de euros a Putin, o que lhe permite amplamente financiar sua guerra. Fechada essa torneirinha, o homem teria de se vergar.

      Quanto ao segundo ponto, muitos pensam como vosmicê – eis por que tantos esportistas e artistas russos estão sofrendo anulação de contratos. Há, no entanto, outra corrente, cuja linha de pensamento de parece interessante.

      Há anos, o povo russo está sendo inundado de propaganda oficial. (Não nos esqueçamos que a jornalista Anna Politkovskaia, crítica feroz do regime putiniano, foi assassinada mais de 15 anos atrás, em 2006. Já naquela época, nenhuma dissidência era tolerada). A juventude russa não conheceu outro dirigente que não seja Putin. Ele faz parte do andar de cima. É “indéboulonnable”.

      Doutrinados, os russos acreditam no que lhes conta a televisão. Não lhes foi permitido desenvolver espírito crítico que baste para contestar a verdade oficial. E a verdade oficial está trabalhando para incutir na cabecinha deles que, se os russos estão sendo barrados no exterior, é porque o mundo não gosta deles. O único remédio, portanto, é acreditar no chefe e seguir suas ordens, coisa que todos farão como um bando de carneirinhos. Nada como um inimigo externo para unir um povo – todo autocrata conhece esse princípio.

      Portanto, acredito que a rejeição que vem sendo mostrada para com infelizes artistas russos que nunca se posicionaram politicamente é contraproducente. O resultado final será reforçar, no seio do povo russo, um sentimento antiocidental. Vai-se obter o exato contrário do que se pretendia.

      Meu abraço.

  2. Desculpe pela brevidade. Dia de arrumar malas. É questão de entender o significado do boicote, não de o julgar a encomenda de um golpe. Faz parte de um conjunto de ações. Apenas lembrei que o valor simbólico da humilhação do orgulho nacional, associado ao sentimento de uma solidão onerosa num mundo agora hostil, terá consequências. A adição desse simbolismo ao problema econômico concreto resultará em algo nada auspicioso ao tirano, seja agora ou mais tarde. Entre a população, há cada vez mais quem deseje o fim de uma invasão com a qual não concordou, e que tem altíssimos custos. O retorno humilhante dos rejeitados apenas incrementa um sentimento interno de desaprovação. E é o que o Ocidente quer com o boicote. Só isso. É óbvio que num mundo perfeito, em tempos de paz, músicos russos não deveriam pagar pelo que seu país faz a outro. Se essa injustiça, no entanto – seja por que meio for -, servir para abreviar algo mais grave e cruel, o massacre de populações ucranianas, já estará justificada. Aos músicos russos, poder-se-á oferecer compensação mais tarde. Eles aceitarão. Aos mortos da Ucrânia, só restarão o kaddish, a terra fria e os vermes como companhia. É preciso agir em todas as frentes.

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