Salve-se quem puder. Por José Horta Manzano
Quando este blogueiro ainda frequentava as carteiras da escola, em mil novecentos e antigamente, havia muitos estrangeiros no Brasil. Era gente vinda de muitos horizontes. Me lembro que a imensa maioria de meus colegas era composta por descendentes de estrangeiros chegados recentemente. Brasileiros quatrocentões, havia poucos.
Entre os colegas, havia filhos e netos de imigrantes. Cheguei até a ter um colega de ginásio, de quem tenho notícias até hoje, que tinha nascido no exterior, fato menos corriqueiro. Havia sírio-libaneses, judeus da Europa oriental, portugueses, italianos, alemães, suíços, franceses, japoneses. Muitos eram perfeitamente bilíngues; na escola, falavam como todos nós, mas em casa falavam outra língua. Vindo de família monoglota, sempre achei isso fabuloso.
As origens eram diversas, mas um ponto era comum a todos. Ninguém emigra pra fazer turismo. Se uma família decide vender o que tem, abandonar as raízes, fazer as malas e dar um salto num país desconhecido, do outro lado do oceano, é por estar sendo impelida por razões muito poderosas. O mais das vezes, os imigrantes vinham por não enxergar futuro na terra natal ou por estarem arruinados depois de perder tudo em guerras e perseguições.
Com o passar das décadas, as cicatrizes da Segunda Guerra foram se fechando na Europa, nosso maior fornecedor de imigrantes. A partir do fim dos anos 1970, o fluxo praticamente se extinguiu. A Europa enricou e o fluxo se inverteu: de fornecedora de imigrantes, ela passou a receptora.
O problema é que, nos últimos anos, o volume de africanos que procuram chegar à Europa tem sido tão importante, que os governos decidiram restringir-lhes a entrada. Os candidatos mais temerários tentam forçar a porta. De canoa, a pé, escondidos em caçamba de caminhão, dentro de contêiner – os meios mais arriscados são utilizados. Uns conseguem chegar, outros são repelidos. Sem contar os que perecem no caminho.
Não conheço a história dessa refugiada congolesa que aparece na chamada da Folha de São Paulo que pus na entrada do artigo. Congoleses costumavam se refugiar na Bélgica (a antiga potência colonial) ou eventualmente na França. É possível que acolhida tenha sido negada a essa senhora, daí estar entre nós.
A frase que a mulher pronunciou dá uma tristeza infinita. “Não quero que meus filhos cresçam no Brasil” é uma das declarações mais terríveis que já ouvi sobre meu país. O pior é que a refugiada não é a única a pensar assim. A frase está na mente de muito brasileiro nascido e criado na pátria: “Não quero que meus filhos cresçam no Brasil”.
Por que isso ocorre? Onde é que erramos? O Brasil é feito por nós, minha gente! Nenhum dos que fazem as leis, dos que se sentam na cadeira presidencial, dos que dirigem municípios e estados é extraterrestre, descido de um disco voador. Todos foram escolhidos por nós.
Os dois personagens que dominam a cena de nossas próximas eleições presidenciais não são desconhecidos. Ambos já governaram o país. Portanto, a desculpa de 2018, quando um então quase desconhecido Bolsonaro foi eleito, não vale mais. Desta vez, sabemos com quem estamos tratando.
Sabemos que o país tem andado pra trás nos últimos 20 anos. As perspectivas de avanço de nosso processo civilizatório, o futuro decente ansiado pelos antigos imigrantes, foi pro beleléu.
Corrupção, roubalheira, migalhas jogadas aos pobres foi o que se viu com o lulopetismo. Além da violência crescente. Corrupção, baixaria, descaso com a população é o que se vê com Bolsonaro. Além da violência crescente. Por que é que os brasileiros insistem em dar seu voto de confiança a um desses dois estropícios? Nesta altura do campeonato, ninguém pode alegar desconhecê-los.
Se o brasileiro insistir nesse erro, não só os imigrantes recentes vão querer dar o fora. Os descendentes de imigrantes antigos vão seguir o mesmo caminho, esvaziando o país do que ele tem de melhor e deixando os que ficarem à mercê de milícias e braços do crime organizado.
Entre o cachaceiro e o farofeiro, cabe a você escolher.
___________________________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
_________________________________________________________
Criei meus dois filhos aqui em São Paulo e desde que tinham entendimento eu dizia a eles para, quando pudessem, irem embora. Eles ainda não foram, espero que uma hora sigam em frente.
Você se espanta do motivo que move alguém a desejar isso. É fácil tal espanto para quem vive no exterior há 45 anos.
Sugiro que volte a morar neste país: entenderá a razão.
Vejo que não me fiz entender, prezada Varlice. Vamos lá.
Eu não me espanto do motivo que move alguém a desejar que seus filhos deem o fora o mais rápido possível. Conheço esse motivo e, se morasse aí, se tivesse filhos e se tivesse folga financeira (um monte de “se”…), certamente os encorajaria a levantar acampamento rapidinho.
Minha surpresa é quanto ao tremendo contraste entre o futuro risonho e civilizado que nós, os jovens de sessenta anos atrás, vislumbrávamos, comparado ao presente violento e primitivo que os jovens de hoje são obrigados a enfrentar.
Minhas perguntas continuam no ar: Que aconteceu? O que é que destruiu nossos sonhos? A partir de que momento começamos a escorregar pra trás? Por que a violência cresceu de tal maneira? Por que o país empacou?
Não acredito ser possível apontar um único culpado: o regime militar, o lulopetismo, a Constituição de 88, a ascensão do neopentecostalismo, o alargamento do fosso entre os que têm muito e os que não têm nada, a corrupção, a ganância, a impunibilidade, a implantação de quadrilhas armadas com a cumplicidade de quem manda. Cada qual tem sua parte de culpa.
Razões, é fácil encontrar. Mas… como sociedade organizada, onde é que erramos? Por que foi que deixamos de nos preocupar com o bem comum e passamos a nos enjaular detrás das barras eletrificadas de condomínios protegidos?
Abraço.
Prezado amigo virtual (se me permite assim chamá-lo). Estive fora por mais de um mês e agora, três dias depois de novamente tocar o solo desta terra tão cruel e desumana, a primeira notícia que me chama a atenção, passado o tempo de readaptação emocional a este pântano, vem a ser exatamente esta; a de mais uma inacreditável barbárie que por aqui ocorre com a naturalidade e a aisance que já nos destruiu como nação, como povo, como projeto humano. Já decretamos falência. Não parece haver volta. Humanos verde-amarelos que retornam a passos largos ao estágio do macaco ainda alcançarão um dia as larvas, os vermes, as amebas. Brasileiro… Às vezes, dá vergonha de ser. Não somos “o país do futuro”. Somos o passado da humanidade.
Pouco antes do fim do ano, despedi-me de minha mulher no aeroporto com um beijo e uma ordem: “esteja viva quando eu voltar!” Felizmente, está. Mas está triste, assim como eu, porque este recanto anda mais mórbido que nunca. Sair de um país civilizado e retornar ao Brasil equivale, hoje, a entrar numa espécie de túnel do tempo que nos devolve à selva que existia antes do ‘homo’ virar ‘erectus’ (nem falemos de “sapiens”, que seria ficção pura e simples…). Depois de mais de um mês maravilhoso e cheio de neve, passado em companhia de minha filhota que mora desde há uns cinco anos em nosso pequenino chalé numa encosta nas Laurentides (nor-noroeste de Montreal), a sensação que me toma agora é de alívio por ela, e de desespero por mim, por minha mulher, por meus cãezinhos (que temo serem mais uma vez barbaramente hostilizados; já aconteceu uma vez). Ao rever este país, é inevitável dar-me conta da sorte que é ter essa filha tão especial em tudo, tão linda, tão inteligente, radiante após sua defesa de tese, já trabalhando num instituto de pesquisas ligado à McGill University e morando num lugar tão bom pra se viver em paz, prosperar, partilhar, crescer como ser humano livre da mesquinhez e do terror que derrotam o Brasil um pouco mais a cada dia que passa. (Desculpe aí pelo pai babão que sou por estes dias, mas minha filha é meu mundo, meu céu e minha Lua Crescente, e esse universo é apenas encantador!)
Fico, porém, pensando na tristeza dessa refugiada congolesa. Que pena sinto dessa mulher. Quer ela, com razão, que seus filhos estejam tão longe daqui quanto minha filha está. É nesses momentos que a gente pensa em justiça, em não tê-la, em merecê-la e não alcançá-la. Terão seus filhos a oportunidade de viver noutro lugar? Vivendo aqui, que sorte espera por eles? Que assassinos terão de evitar? São negros, que vida dura terão de viver…
Minha mulher embarca rumo a Montreal daqui a duas semanas, porque também está morrendo de saudades de nossa filha. Ao partir, também vai me ordenar que esteja vivo quando ela voltar. A gente sempre faz isso. A gente conhece o Brasil. (Também vai me ordenar que mantenha em paz e plena saúde nossos cinco Pomerâneas – em breve, seis -; são a verdadeira razão pela qual não viajamos juntos, afinal os bichinhos sentem muito a nossa falta e alguém tem de tomar conta deles.)
Pois é… Que merda de país é o Brasil. Metade da população não tem a ração, os cuidados médicos, as caminhas quentinhas que meus cãezinhos têm em seu lar. De fato, não tem nem lar, porque, para o seu povo, o Brasil deixou de ser isso faz muito tempo. O Brasil é um purgatório.
É isso, meu caro. Mesmo em situações tão miseráveis, é sempre bom reler um artigo teu. Abraço.
Monsieur le Renard, bonjour et shalom! Vous nous avez manqué!
De verdade, nestes tempos de covid, a gente chega a ficar preocupado quando alguém desaparece de supetão. Com que então, acaba de descalçar as botas de neve, de retorno dos montes que formam a bacia do São Lourenço! Desejo que sua filha continue entusiasmada e alcance plenamente os objetivos que foi lá buscar. Quem sabe o pai babão e a mãe coruja ainda não se animam a passar temporadas mais longas por lá, daqui a muitos e muitos anos, quando soar a hora da aposentadoria?
É verdade que dá uma pena enorme dessa mulher congolesa. Pedir refúgio em lugar desconhecido, do outro lado do oceano, é dilacerante. Se o pedido foi aceito, é sinal de que motivo havia – perseguição religiosa ou política, risco de vida comprovado. De repente, a infeliz descobre que os de sua cor são maltratados indiscriminadamente no país de asilo, independentemente de religião ou opinião política! Por pura perseguição racial, como nos tempos bíblicos! É um drama dentro do drama.
O mais terrível nessa história toda é que essa senhora não tem como esconder a origem. É como na China: a gente não precisa dizer que é estrangeiro, porque está na cara. Religião se oculta, opinião política se cala, mas etnia não tem como guardar no bolso. Se vê. Negros, infelizmente, não estão bem em lugar nenhum. São olhados de esguelha na Europa, maltratados na América do Norte, rejeitados no Extremo Oriente e, como se viu, tratados a porretada no Brasil. E o pior é que não podem nem voltar ao país de origem, seja por estarem no index, seja pela miséria e pela absoluta falta de horizonte que por lá dominam. Houve muitos povos mártires no passado da humanidade. Tudo muda. Hoje eu diria que os que mais sofrem são os pretos.
Mas o que entristece mais ainda é que isso podia até acontecer em outras partes, mas não no Brasil. Convivi, na juventude, com dúzias de colegas judeus. Eram todos de primeira geração, nascidos no Brasil de pais que haviam fugido a tempo do Holocausto. Tive também colegas do Nordeste, alguns pardos, um ou outro cego. Nunca tive notícia de que nenhum deles tenha sido menos considerado por razões de origem. Eis por que continuo me perguntando: o que é que aconteceu?
Forte abraço.
Bem, meu caro, não é que eu ou minha patroa não queiramos. Infelizmente, como você notou, o trampo espera pela gente. E ele não tem muita paciência. De fato, pra entrar no assunto, nós já vivemos muito tempo por aquelas bandas (vem de lá meu nick redfox, mas isso será assunto pra outra conversa). Aliás, minha filha nasceu lá (ou seja, est canadienne, québécoise e trilingue naturelle!) numa época em que minha mulher se formava na McGill e eu fazia parte de meu doutorado na Université de Montréal. Depois dessa primeira estadia, voltamos várias outras vezes, sempre pra ficar meses ou até anos, como, por exemplo, quando fui contratado como professor visitante por dois anos e minha mulher iniciou e terminou seu doutorado. Vem dessa época a aquisição do chalezinho nas Laurentides (que não é a nor-noroeste de Montreal, mas a noroeste mesmo) e o interesse da menina (agora já PhD – aí, que pai bobo eu sou, né…) em iniciar lá uma pós-graduação – aliás, na mesma área do papai, que no momento se encontra embriagado de alegria…
Bem, apenas pra atualizar as coisas, já que você menciona a possibilidade, acabei mesmo por pegar essa tal Ômicron no avião, indo pra lá. E, de quebra, tal como todo bom pai faria, contaminei também essa pessoa que mais amo na vida. Claro, sem saber, até porque a tal variante não me causou absolutamente nada, nem um espirro. Com três doses no braço, acho que estou bem protegido dela. Quanto a minha filha, que tomou duas doses de Pfizer, tampouco sentiu qualquer coisa. Descobrimos a contaminação por acaso quando, cumprindo protocolos acadêmicos, submetemo-nos a testes para frequentar as universidades em que reencontrei amigos, ex-colegas e atuais colegas de minha filha.
É isso, meu caro. Volto agora à leitura de meus orientandos. Hélas!, les vacances d’hiver sont terminées… A saudade bate à minha porta desde que cheguei ao Pierre Elliott Trudeau. Quando entrei no saguão de embarque, já segurava as lágrimas. Ser pai é sofrer no paraíso! (alguém a meu lado ainda vai me processar pela paráfrase…)
Abraço virtual. Como dizia Réné Lévesque, à la prochaine fois!
À la prochaine, très cher ami. Grand merci pour toutes ces confidences. C’est un parcours de vie très au-dessus de l’ordinaire. Bravo!
jhm