Espaço para a barbárie. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*
SERÁ QUE TEMOS MESMO ALGO A DIZER?
Vinte e cinco milhões de pessoas no Afeganistão, milhares de crianças, estão morrendo de fome. Essa vasta camada de afegãos só tem para comer farinha seca. A Rússia – e a Inglaterra também – está lá desde antes de Gorbachev (1979). Com um território duas vezes o do Brasil (17,1 milhões de km2) os russos agora querem invadir também a Ucrânia. Já o fizeram na Criméia.
É de se perguntar qual o sentido da visita de Bolsonaro a Putin? No olhar dos brasileiros, é algo sem sentido, sequer de efeito pré-eleitoral. Ele não tem prestígio por lá. Dá para explicar, mas para entender não. Proteger a parceria comercial. Ambos são parceiros. No Brasil vivem mais de 600 mil ucranianos.
Em pleno século 21, com um quadro desafiador de recursos naturais escasseando na terra, o homem desembarcando em outros planetas e as tecnologias tentando indicar rumos alternativos, o mundo assiste, ao vivo, o drama de mais de 30 conflitos políticos pelo planeta, deixando sempre um rastro de miséria, de fome e de morte. Atrás deles estão sistematicamente a Rússia ou os Estados Unidos.
A maioria são confrontos domésticos, entre vizinhos ou entre irmãos. Insurgências ideológicas internas mortais, algumas tribais e outro tanto sem quaisquer explicação compreensível. Há um grupo de países que registra, nesses conflitos, mortes superiores a 40 mil cidadãos por ano. Parece haver ainda nesse mundo civilizado um vasto espaço para a barbárie, para o cultivo da violência, por exemplo, contra a mulher na Índia, no Paquistão, entre mulçumanos e indús.
Alguns desse confrontos são históricos, excessivamente prolongados, o que parece, curiosamente, demonstrar uma intransigência política lá fora muito maior do que por aqui. Na política brasileira, agitada por 35 agremiações partidárias registradas, outro tanto camufladas, já se fala até em Federação de partidos. A impressão que se tem é a de que no Brasil somos todos simpatizantes uns dos outros.
Mas vivemos nos deglutindo, por causa das individualidades latentes, sem nenhum efeito prático. Se os candidatos à Presidência da República juntassem seus programas de governo, formulassem um projeto comum para o País, e deixassem o povo decidir, talvez se pudesse chegar a algum lugar e até ajudar mais aos outros.
Nas condições dadas, é um destruindo o projeto do outro. Cada candidato quer jogar o que pensa na cara do suposto adversário: brigas de comadres. Tem aí uma forte dose de narcisismo, considerado como natural. Realiza-se politicamente: mastigando. Quando se chega ao Poder tudo é diferente do que se imaginou e apregoou. Os eleitores não existem mais, sequer como cidadãos. A cada eleição, os problemas ganham novo fôlego.
Tão vilipendiados entre si, surpreende aos brasileiros serem chamados a participar de missões de apaziguamento e de socorro à quase um bilhão de pessoas desamparadas no mundo, famintas mesmo. O olhar que tem tido uma importante presença nos esforços de paz no Oriente Médio, no ex- Congo Belga, em Chipre, em Angola, em Moçambique e mais recentemente no Timor-Leste e no Haiti.
Pois, veja-se. O Brasil acaba de ser eleito com 181 votos, na 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em agosto de 2021, para voltar a ocupar assento no Conselho de Segurança da ONU, no biênio 2022-2023. Será a 11ª vez que o país integrará o mais importante órgão responsável pela segurança e a paz do mundo.
Que voz é essa do Brasil que, por aqui, ninguém ouve. Será que temos mesmo algo a dizer?
Felizmente, as posturas externas do Brasil, com raríssimas exceções, não mudam muito. Os presidentes brasileiros vão lá fazem o seu “comercial” e, na hora de votar, tergiversam. Na maioria das vezes por considerar que o Brasil não tem nada a ver com a maioria daqueles conflitos, em particular os mais graves, que envolvem guerras. Por aqui fabricam-se apenas armas caseiras.
O Conselho de Segurança é formado por 15 países com direito a voto. Mas apenas Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, China e Rússia são membros permanentes, e com poder de veto. Os outros 10 assentos são temporários, substituídos a cada dois anos. Junto com o Brasil, foram eleitos a Albânia, o Gabão, Gana e os Emirados Árabes Unidos. Eles se juntam à Índia, Irlanda, Quênia, México e Noruega cujos mandatos terminam em agosto deste ano.
Contudo, quem segura mesmo a bola dentro da Organização são dois membros guerreiros com a prerrogativa de veto. Uma ironia em tempos ditos civilizados. Pior, Rússia e os Estados Unidos brigam entre si, e tentam envolver outros. Agem fomentando revoluções e guerras (civis pacem parabelum).
Falam em nome de uma democracia social, e invadem o País dos outros na cara da ONU.
De imediato, está na pauta do Conselho de Segurança a possibilidade de uma invasão da Ucrânia pela Rússia que, se acontecer, pode vir a envolver os Estados Unidos, a Europa e, por tabela, o Brasil. Onde está o bom senso da arbitragem apropriada? É de se perguntar como isso repercute dentro da ONU? Pode-se confiar? E o Brasil, hein?! Quem são nossos ministros das Relações Exteriores? De onde vieram? Quantos votos tiveram internamente para poderem falar grosso lá fora?
Resultado: não falam. Ficam calados, ou balançam a cabeça quase dormindo.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: