Elza Soares e eu. Blog do Mário Marinho (Especial)
Naquele começo dos anos 1960, Belo Horizonte tinha poucos espaços para apresentações artísticas.
Havia o teatro Francisco Nunes, dentro do belo Parque Municipal encravado no coração da cidade.
Mas suas condições eram tão ruins – tanto para os profissionais quanto para o público – que os críticos costumavam chamar o Francisco Nunes de pardieiro.
Alguns espetáculos com previsão de muito público eram apresentados no ginásio Paiçandu localizado junto à rodoviária, numa área não muito nobre.
O espaço era usado para apresentação de cantores populares – Nelson Gonçalves, Anísio Silva – e para bailes, também populares, de carnaval.
Foi ali que Elza Soares se apresentou em 1961.
Eu era um dos espectadores assentados em desconfortáveis arquibancadas de cimento, mas sai dali fascinado por aquela morena de voz rouca e incrível balanço.
Ela tinha 34 anos e eu por volta dos 18.
A música que mais me chamou a atenção e da qual jamais esqueci foi “Boato”, um samba-canção de autoria do jovem compositor carioca João Roberto Kelly.
Sete anos depois, eu estava frente a frente com Elza e Garrincha.
Era o ano de 1968.
Eu estava no Rio de Janeiro cobrindo um jogo do Palmeiras pelo Robertão, embrião do Campeonato Brasileiro.
O jogo foi na quarta-feira, à noite.
Ao chegar à redação da sucursal, recebi comunicação da chefia de Esportes, em São Paulo, para permanecer no Rio e entrevistar o Garrincha que, no domingo seguinte, faria sua estreia no Flamengo, em mais uma das muitas tentativas de voltar ao futebol.
Fui à Gávea na quinta pela manhã acompanhar o treino do Flamengo.
Ao final do treino, procurei Garrincha, me apresentei, e pedi uma entrevista para falar de sua volta ao futebol.
Naquela altura dos acontecimentos, Garrincha, que havia saído do Botafogo em 1965 (onde chegou em 1965), já passara pelo Corinthians (1966), Portuguesa Santista, Fortaleza e o colombiano Atlético Junior.
(Garrincha ainda passaria pelo Novo Hamburgo-RS, FC Rio-Grandense, e diversos clubes onde fazia apresentações em troca de minguados cachês até encerrar a carreira em 1972 no Olaria)
Com seu jeito simploriamente meigo, ele me convidou para tomar um café em seu apartamento, naquela tarde.
No horário combinado lá estava eu no belo apartamento da Elza Soares, na avenida República do Peru, Copacabana.
Foi ela quem abriu a porta para mim e me indicou um sofá branco, naquela ampla sala de tapetes também brancos.
Coisa fina.
Comecei a levar um papo com Garrincha, aquela conversa assim meio introdutória.
Ele me chamava de “Gente boa” que era a forma de tratamento para quem ele não sabia o nome. Quase todo mundo para ele era gente boa.
Elza o chamava de “Nenê”. E ele a tratava por “Crioula”.
A entrevista seguia normalmente até que eu toquei num ponto sensível: o Botafogo.
Era sabido que o Botafogo usou e abusou do Garrincha.
Chegava ao ponto de ele tomar aplicações nos intervalos de jogo para voltar no segundo tempo. Afinal, com a presença dele, o Botafogo faturava uma grana em amistoso. Sem ele, o cachê caía pela metade.
Quando perguntei se ele não se sentiu muito explorado, ele abriu um sorriso tímido naquele seu olhar sempre triste e disse:
– Gente boa, não vamos falar sobre isso. Eu fiz muitos amigos no Botafogo.
Elza não se conteve e com aquela sua voz rouca, ordenou:
– Nenê, vá lá pra dentro e faz um café pra nós. Eu vou falar sobre isso.
– Crioula, pra que tocar nesse assunto?
Ele reclamou, mas, na sequência, se levantou e foi fazer o café.
Elza falou sobre aquilo que todos sabiam: a exploração do Garrincha pelo Botafogo.
Os dois estavam juntos desde a Copa do Mundo de 1962.
Desde aquela época, Garrincha já cultivava dois vícios: álcool e sexo.
Aliás, conta-se uma passagem do Garrincha naquela Copa em que ele foi o grande astro.
Segundo essa história, assim que a Seleção chegou ao Chile, o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, fez uma preleção forte para os jogadores, mostrando a cada um a sua responsabilidade.
Naquela noite, o doutor Paulo, como era tratado, chamou um de seus auxiliares para uma conversa.
– Você vai ficar de olho vivo pro pessoal não fugir da concentração.
O auxiliar, que conhecia bem a todos, viu que não seria fácil.
– Mas, doutor Paulo, e se o Garrincha tentar sair? O que eu faço? Seguro ele?
– Não, nada disso. É claro que ele vai sair. Você tem que acompanhá-lo e se certificar que ele volta antes do dia amanhecer.
Elza Soares sofreu muito com situação de amante.
A imprensa sensacionalista a tratou como a mulher fatal, rica, que se aproveitava da ingenuidade do jogador e o tirou do convívio da família – a esposa e seus 8 filhos.
Na verdade, não fosse Elza Soares, Garrincha teria morrido muito mais cedo, vencido pelo vício do álcool. Isso fica muito claro no excelente livro de Ruy Castro “Estrela Solitária – um Anjo Chamado Garrincha”.
Só voltei a Encontrar Elza Soares em 1992, quando eu dirigi um programa na tevê Record, que era apresentado por Nei Gonçalves Dias. Elza foi se apresentar no programa e eu aproveitei para tietá-la.
Falei sobre a primeira vez que a vi, no Ginásio do Paiçandu, em BH, e ela, simpaticamente, fingiu que se lembrava.
Ela e Garrincha tiveram um filho, Manoel Francisco dos Santos Júnior, que morreu em acidente automobilístico aos 9 anos de idade.
Elza foi uma guerreira.
Casou-se aos 12 anos de idade por ordem do pai que desconfiava que sua filha havia sido abusada sexualmente e obrigou o agressor a se casar com ela.
Aos 18 anos, Elza tinha quatro filhos quando o marido morreu.
Começou a inglória luta de trabalhar pelo sustento dos filhos. Foi faxineira, lavadeira.
Gostava de cantar e, acreditando em si, conseguiu participar do programa para calouros comandado por Ary Barroso.
Abriu-se uma porta que só se fecharia com a morte no dia 20-01-2022, mesma data de morte de seu grande amor, Garrincha, em 1983.
Em 1999, a rádio BBC, de Londres, deu a ela o título de cantora do Millenium.
Com sua voz quente e rouca, Elza Soares cantou pelo mundo.
E encantou o mundo.
Ela, em Boato:
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Mário Marinho – É jornalista. É mineiro. Especializado em jornalismo esportivo, foi durante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, além de participação em inúmeros livros e revistas do setor esportivo.
(DUAS VEZES POR SEMANA E SEMPRE QUE TIVER MAIS
NOVIDADE OU COISA BOA DE COMENTAR)
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A vida de repórter nos permite encontros inesperados que podemos guardar para sempre com a intensidade do momento.
Parabéns pelo texto.
Abraços
Zancopé Simões
Belo relato, amigo! Outra das suas belas histórias!!!
Mitico Godoy
Boa tarde Marinho,
Bela história com eles. Abraços
Ricardo