Being the Ricardos. Por Wladimir Weltman
Há dias leio postagens de colegas sobre o filme BEING THE RICARDOS. Alguns parecem gostar. Outros (a maioria) parece odiar. Tinha me prometido não me manifestar. Nada mais patético a esta altura dos acontecimentos do que polemizar na Internet. Mas hoje acordei as quatro e meia da manhã e perdi o sono. Deve ter sido praga da Lucille Ball, uma mulher das mais obstinadas de Hollywood e cuja alma ainda deve pairar sobre esta cidade onde tenho o privilégio de morar.
Tenho o maior respeito por alguns desses meus colegas da TV que se manifestaram negativamente sobre o filme, o elenco e o roteiro. Não pretendo entrar no mérito de suas críticas. Na verdade admito que sou péssimo como crítico. Em geral gosto de quase todos os filmes que assisto. Mas nesse caso específico sou extremamente suspeito. Fazendo um trocadilho com o nome da série, eu não “Love Lucy”, eu simplesmente a adoro de paixão. Há anos sou fã da série. Cresci assistindo dublada em português e, depois que vim morar nos EUA, assisti a quase todos os episódios no original. E sei tudo, ou quase tudo sobre os bastidores da série e/ou do relacionamento entre Lucille Ball e seu marido, Desi Arnaz. E talvez seja por isso que gostei tanto do filme, da escalação dos atores, do roteiro e da direção.
Os que criticam a escolha de Nicole Kidman para o papel de Lucille Ball, a acusam de não ser a ideal para vivê-la na tela. Que Débora Messing, uma comediante de mão cheia e fisicamente mais parecida com Lucille seria a ideal. Quem disse isso talvez se surpreendesse de saber que a própria Nicole concorda com eles. A ouvi admitir isso em pessoa, logo após a première do filme no cinema Regency Bruin Theatre em Westwood, quando o elenco veio a frente da plateia conversar com os presentes. Quando entrou, Nicole foi aplaudida de pé. O moderador da conversa perguntou se ela teve dúvidas em aceitar o papel quando convidada. Ao que ela respondeu:
“Não pensei muito sobre isso. É assim que conduzi a maior parte da minha vida e carreira. O que foi bom, porque se tivesse parado pra pensar, certamente não teria aceitado. Um mês depois fiquei cheia de dúvidas. E Aaron (Sorkin) teve que me ligar e me enviar vários e-mails dizendo “você vai conseguir”. Ele ficou ao meu lado durante as filmagens. Ele e todo esse elenco. Nos apoiamos muito, um ao outro, durante o processo, porque foi assustador e incrivelmente emocionante fazê-lo. Ao mesmo tempo eu amo Lucille Ball.”
veja o vídeo dela falando – https://youtu.be/CGgkd6arMh0
Sorkin, que também estava lá, explicou: “Deixei claro para o elenco que não estava procurando uma representação física ou vocal dessas pessoas”.
O que ele realmente buscou foi mostrar na tela aquilo que o público raramente viu ou sequer suspeitava que acontecia nos bastidores: todo o drama e conflito que essas pessoas de carne e osso, em meio a imensas pressões e contradições, estavam vivendo num momento histórico complexo e socialmente desafiante.
Se hoje em dia vivemos tempos difíceis, os anos 50 eram muito pior. E o filme aborda essa realidade de maneira eficiente. Questões atualíssimas como preconceito racial e étnico, direitos das mulheres, e uma sociedade controlada por homens sisudos e preconceituosos. As produções televisivas e cinematográficas desse período mostravam casais dormindo em camas separadas. As mulheres deviam ser boas donas de casa, desmioladas e olhe lá. Quando Lucille Ball ficou grávida e quis incorporar sua gravidez a história, foi um Deus nos acuda na emissora.
Sem falar na realidade política da época. O mundo estava dividido pela Guerra Fria, e o Macartismo caçava esquerdistas americanos em Hollywood ceifando carreiras e espalhando terror. Lucille quase perdeu o show e a carreira, quando tabloides noticiaram que na juventude ela foi afiliada ao Partido Comunista Americano. O filme aborda isso também e como ela e Desi contornaram essa crise.
I LOVE LUCY, capitaneado por Lucille Ball e Desi Arnaz foi também pioneira em outros aspectos sociais e humanos importantes. Enquanto a sala de roteiristas de outros shows da TV americana era basicamente povoada por homens, I LOVE LUCY tinha uma equipe mista de homens e uma mulher. E Lucille fazia questão de que os roteiros explorassem questões essencialmente femininas de uma forma inteligente. Lucy e Ethel competiam de igual para igual com os maridos seja no lar, seja nas frentes de trabalho. E, o mais importante, a estrela do show era uma mulher!
O que a grande maioria das pessoas de hoje e alguns dos críticos do filme não sabem, nem imaginam, é a importância histórica de I LOVE LUCY para o desenvolvimento das comédias de situação (as Sitcoms) e para a produção televisiva americana. Nesse ponto é que a figura de Desi Arnaz passa a ser fundamental e justifica a escolha de um ator do perfil de Javier Bardem para interpreta-lo.
Digo isso porque outra das críticas a BEING THE RICARDOS é que o ator espanhol não seria indicado para vivê-lo. Pessoalmente acho a escolha perfeita. O espanhol ganhador do Oscar, prestigiado e adorado no mundo inteiro, tem tudo a ver com esse cubano sui generis que era Desi e que muita gente nem tem a noção real de quem ele era.
Muito mais do que um “latin lover” que vivia às custas da esposa famosa; mais que o “band líder”, tocador de bongo, cujo único sucesso musical seria a canção ”Babalu” (que no Brasil foi eternizado na voz de Angela Maria) e mais que uma figura constante nas revistas de fofocas como o “Don Juan” indiscreto e infiel, Desiderio Alberto Arnaz y de Acha III (1917 – 1986), foi um produtor artístico brilhante e respeitado por todos em Hollywood.
Filho do prefeito mais jovem de Santiago de Cuba, ele era descendente da aristocracia cubana. Desi foi quem idealizou a forma como os americanos produzem Sitcoms até hoje. Naquela época, a maioria dos programas de TV eram ao vivo. Foi Desi quem teve a ideia de captar o show com público ao vivo, utilizando mais de uma câmera de cinema. Isso possibilitou enviar copias do programa a todas as emissoras do país com imagem e som de alta qualidade. Os executivos da rede consideraram o uso de filmes um gasto desnecessário. A Desilu, a produtora de Desi e Lucille se propôs a arcar com os custos adicionais das filmagens, ficando com os direitos das cópias e negativos. Isso foi um dos melhores negócios da história da televisão. Até hoje a série continua em exibição em algum lugar do mundo gerando faturamento, mais de 60 anos depois de produzida.
Além disso, Desi abriu espaço na TV americana para personagens étnicos e raciais distintos, em especial latinos, numa época em que a programação americana era 90% wasp, ou seja “branca, anglo-saxônica e protestante”. E tudo isso evidencia-se brilhantemente no roteiro e na direção de Sorkin.
Nicole pode não imitar perfeitamente a voz, ou sequer parecer fisicamente com Lucille Ball, mas Sorkin precisava de uma atriz que pudesse interpretar não a cômica, mas a mulher forte e determinada que surgia quando as câmeras paravam de rodar. Quando o show terminou em 1960, o casal se divorciou e Lucille comprou a parte de Desi na Desilu. Assim ela se tornou a dona da produtora de TV de maior sucesso na época, responsável por séries antológicas como OS INTOCÁVEIS, JORNADA NAS ESTRELAS, MISSÃO IMPOSSÍVEL e os programas seguintes de Lucille Ball na TV americana, que também foram sucesso.
Essa personagem não era a trapalhona Lucy Ricardo, essa personagem era Lucille Désirée Ball. E para vivê-la foi que Aaron Sorkin escalou Nicole Kidman.
O filme se propôs a mostrar tudo isso e o fez de forma brilhante. Como resultado a Critics Choice Association indicou Nicole Kidman para a categoria de Melhor Atriz, J.K. Simmons para Melhor Ator Coadjuvante e Aaron Sorkin para Melhor Roteiro Original. E os Golden Globes indicou Nicole para a categoria de Melhor Atriz, Javier Bardem para Melhor Ator e Sorkin para Melhor Roteiro.
Por tudo isso creio que quem critica o filme precisa dar um passo atrás, esquecer o carinho que tem pela comicidade da série original e entender o painel histórico que Sorkin e o elenco se propôs a retratar e, finalmente dar o braço a torcer – BEING THE RICARDOS é um baita filme!
Tenho dito e vou dormir.
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WLADIMIR WELTMAN – é jornalista, roteirista de cinema e TV e diretor de TV. Cobre Hollywood, de onde informa tudo para o Chumbo Gordo
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Amava o seriado que assistia quando criança.
Gostei muito do filme que apresentou, como você disse, um lado da história – por trás das câmeras – que poucos conheciam.