Boric e o avião presidencial. Por José Horta Manzano
…”Acabo de falar com Gabriel Boric e dei-lhe os parabéns por seu grande triunfo. A partir de hoje é presidente eleito do Chile e merece nosso inteiro respeito e cooperação construtiva. O Chile, sempre em primeiro lugar”…
O segundo turno da eleição presidencial chilena, que se desenrolou domingo 19, foi um prenúncio do que, se a sorte nos abandonar de vez, poderá ser o segundo turno da brasileira: uma briga de foice entre esquerda radical e extrema direita, um coquetel de dar suor frio.
O radical de esquerda, que acabou eleito por franca margem (56% contra 44%), será o presidente mais jovem que o país já conheceu: tem 35 anos. Para presidente de uma República, francamente, é bem jovem. Fosse no Brasil, passaria raspando pelas regras constitucionais. Para exercer a presidência, uma das (poucas) exigências entre nós é exatamente a idade mínima de 35 aninhos.
O extremo-direitista, pelo que fiquei sabendo, é filho de imigrantes vindos da Alemanha. Seu pai foi oficial do exército alemão, veterano da Segunda Guerra. Era inscrito no Partido Nacional Socialista (=nazista). Isso não quer dizer muita coisa, visto que a adesão ao partido dominante era praticamente obrigatória naquele tempo; quem não se inscrevesse não conseguia promoção nenhuma, além de ficar malvisto pelos superiores. Mas há que ter sempre em mente que ninguém pode ser responsabilizado por eventuais erros ou ‘malfeitos’ cometidos por antepassados.
O novo presidente se chama Gabriel Boric Font. O sobrenome Boric (que, no original, se escreve Borić, com acento agudo no “c” e se pronuncia Boritch) é de origem croata. Font, o sobrenome materno, é catalão. Os antepassados paternos deixaram a terra natal 135 anos atrás, quando a região de nascimento fazia parte do Império Austro-Húngaro. Emigraram atraídos pela notícia da descoberta de ouro no sul do Chile.
Assim que a apuração dos votos deixou evidente que o vencedor era o candidato de extrema-esquerda Boric, o candidato derrotado, o extremo-direitista Kast, felicitou o vitorioso por telefone e ainda tuitou uma mensagem para deixar tudo bem claro. Com elegância, mostrou não ter sido contaminado pela atitude de negação da realidade à la Trump. Felizmente, nem todos os da extrema-direita têm aquele jeito escrachado. Até o momento em que escrevo, nosso capitão, alheio aos usos civilizados, não cumprimentou o vencedor. Vamos ver como vai se comportar em outubro que vem, quando entrar para o clube dos perdedores.
Algum tempo atrás, Señor Boric, o presidente recém-eleito, tinha feito uma viagem sentimental à Croácia para se encontrar com primos distantes. Na ocasião, tinha sido apresentado a uma certa Zdenka Borić, sua prima em terceiro grau. Em tom de brincadeira, o chileno, que já militava então na política, disse que, se um dia se tornasse presidente da República, mandaria um avião presidencial buscá-la para conhecer o Chile.
Publicado o resultado da eleição chilena, a mídia croata ficou assanhada com a notícia. Não é todo dia que um filho da nação se torna presidente de um país estrangeiro. Foram ao lugarejo de origem, procuraram pelo sobrenome e encontraram a prima que señor Borić havia visitado anos antes. Entrevistada pelo jornal Vecernij (A Tarde), a mulher contou a história. E logo partiu para a cobrança. Com ar sério, emendou que agora vai ficar à espera do avião presidencial. Vamos ver se chega.
Moral da história
Pense duas vezes antes de prometer mandar buscar alguém com o avião presidencial. Lembre-se que ganhar a eleição está ao alcance de qualquer um! Não precisa ser culto, nem inteligente, nem batalhador. Temos um exemplo vivo atualmente no Planalto.
_______________________________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
__________________________________________________________
Meu caro. Sei que, lá em cima, você usou o termo ‘radical’ livremente, para dar uma ideia do que quis dizer, mas, creia em mim, Lula pode ser tudo, do mais corrupto dos seres vivos no mundo ao mais canhestro falante do próprio idioma, que ele sabe pela metade, mas de uma coisa não se pode acusá-lo: ser um radical, um extremista. De fato, nunca foi. Desde que Dirceu voltou do exílio, e foi na mesma hora enquadrado pelo barbudo que fundava o partido de esquerda mais promissor por estas bandas, Lula nunca chegou nem perto disso. Muita falação pra jogar gasolina no seu próprio cercadinho sempre aceso, isso, claro, ele fez (assim como todos os outros fazem cena para seus fãs), mas, na prática, que ato de extremista de esquerda esse cara cometeu em seu governo? Acho que nenhum, pelo que foi, aliás, muito criticado pela esquerda – particularmente aquela que adora pôr fogo em pneu e fazer fumaça, demonstrando seu apreço pelo meio-ambiente. Passou o primeiro mandato mais colando o modelo econômico herdado de FHC do que tentando levar a sério os conselhos que ouvia dos economistas ‘d’isquerda’ que queriam um pedaço do governo – queriam, mas não ganharam. E não se pode dizer que o bolsa-família, por exemplo, se pareça com qualquer coisa de extremista – a menos que seja um ‘extremista de centro’ que levou Adam Smith a sério e aprendeu algumas lições de Mainard Keines. Quantas empresas privadas Lula estatizou na marra? Quantas intervenções no mercado liberal Lula impôs? Quantos opositores foram presos por discordância? Lula chegou a falar em ‘controle da mídia’ – pelo que seremos eternamente lembrados -, mas, em oito anos de mandato, quantas vezes cerceou realmente o trabalho da imprensa ou calou jornalistas? Quantas vezes disse que não aceitaria decisões do STF, por exemplo? Quantas vezes, contrariado por decisões de órgãos estatais, afirmou a empresários reacionários estúpidos cheios de aplausos que havia ‘ripado’ – eliminado, em linguagem de miliciano – servidores concursados? Enfim, o PT pode ser um partido do qual nem todo mundo precisa gostar, e Lula pode ser um corrupto que nem todo mundo precisa necessariamente odiar, mas como chamar de radical, extremista ou coisa que o valha esse sujeito que quer porque quer Geraldo Alckmin como seu vice? Radical? Radical em quê? Desde que se pôs em campanha – e faz tempo – é provável que tenha encontrado e se entendido com líderes do Centrão mais do que o capitão conseguiu fazer. Definitivamente, pelo menos de meu modestíssimo ponto de vista, o que falta mesmo é um pouco de esquerda a Lula. Se fosse um político menos ‘profissional’ – como corretamente Brickmann o denomina, e não necessariamente para elogiá-lo -, Lula deveria manter certa distância dessa malta. O problema é que essa malta já estará instalada nas entranhas do Palácio do Planalto antes mesmo do dia da posse do próximo ocupante, e estará pronta para aplaudi-lo com uma das mãos enquanto mostra um boleto com a outra.
Assim como Lula se apropriou de valores caros à esquerda e até hoje os usa para proveito próprio, Bolsonaro também assim agiu do outro lado do espelho, de modo inverso.
Nem um é radical de esquerda, nem outro é de extrema direita – aliás, toda vez que se usa a palavra “direita” sempre vem acompanhada da “extrema”, o que não acontece em se tratando da “esquerda”… Lula e Bolsonaro são só dois arrivistas espertos num país cuja democracia recém-nascida e claudicante ainda tenta encontrar seu justo caminho – sendo o primeiro bem mais esperto do que o segundo.
Lula e Bolsonaro não são iguais, mas se equivalem na desfaçatez, no amor à própria imagem, na manipulação, e são faces de uma mesma moedinha falsa e vagabunda de três reais – e seus seguidores de ambos os lados têm comportamentos similares, o que só corrobora a sua equivalência.
Extremos nunca foram ou são o ideal.
Por enquanto, infelizmente, esses são os exemplos que temos.
Prezado Manzano. No que tange ao arrivismo, nada tenho a opor, mas é de se lamentar que não seja exclusivo a esses dois. Digamos que é doença mais contagiosa que a covid entre políticos por aqui. Lula, a metamorfose ambulante que é muita coisa ao mesmo tempo, é inclusive um arrivista. Tornou-se um, aperfeiçoou-se com o tempo, e seus filhos muito engordaram (eles e suas fortunas) durante essa muda do metalúrgico grosseiro que o tornou doutor honoris causa (por uma universidade europeia, creio que portuguesa). Desnecessário dizer, no entanto (o que o separa largamente do capitão), que também realizou algo, gostemos ou não de admiti-lo. O período de seu governo foi aquele em que mais políticas públicas e sociais importantes foram produzidas – algumas de relevância indiscutível, como o próprio bolsa-família, maior programa de transferência de renda do mundo, diz a OIT; ou a política de aumentos reais para o salário mínimo, além de todas as políticas de preservação do meio-ambiente que, naquele período, foram postas em prática. Isso para não mencionar as políticas na área do direito das minorias, de promoção social, de acesso ampliado ao ensino superior por meio de cotas, de universalização da saúde pública, de aumento da base de admissibilidade à aposentadoria do INSS e por aí vai. Tudo isso, vindo desse corrupto ou de qualquer um, é política pública em benefício da população do país, particularmente da mais pobre. Isso nunca foi política radical ou de extrema-qualquer-coisa. Foram políticas que, obviamente incapazes de resolver e zerar os problemas, pelo menos fizeram parte de um esforço governamental que apontava para o lado certo. O capitão, porém, é um caso muito diferente, e compará-lo a Lula não faz bem à verdade. Bolsonaro, ele sim, é um extremista com todas as letras. Compare. Ele cola o que de pior existe no mundo da extrema direita, concedendo-se o direito de 1. planejar golpes de Estado (que felizmente nunca consegue realizar, mas que tenta); 2. pôr em marcha projeto de colonizar a corte suprema do país, intimando seus indicados a fazerem ideologia e proselitismo religioso, não justiça; 3. declarar, enquanto isso não acontece, que desrespeita na cara dura essa mesma corte (até levar carraspana que gente mais experiente lhe aplica, e ficar quietinho, infelizmente por pouco tempo); 4. trabalhar incessantemente contra a constituição de direitos de minorias étnicas, raciais ou de gênero, o que inclui até mesmo mulheres heterossexuais; 5. desrespeitar as leis de seu próprio país (!) para, dentre outras, transformar floresta viva em madeira contrabandeada (por meio de advocacia administrativa de seu ministro do meio-ambiente!); 6. defender publicamente, antes e durante seu mandato presidencial, a tortura como instrumento legítimo em investigações policiais; 7. pregar o heroísmo de assassinos e torturadores, milicos de outros tempos, e condecorar descendentes e cônjuges deles pela ‘bravura’ de torturar e assassinar; 8. implementar políticas na área da segurança pública que facilitam a atividade de milicianos executores que, segundo ele, são ‘bem-vindos’ à sua cidade (eventualmente associando-se a eles em casos como o da morte de Marielle Franco, por exemplo); 9. destruir a legislação anterior e facilitar a compra e o livre trânsito de armas de fogo de todos os calibres, interferir decisivamente (no que muito foi ajudado por Moro, seu ministro da justiça) para que munição comprada pelas polícias federal e estaduais não mais fossem numeradas, o que impossibilita rastrear seu uso paralelo por milicianos; 10. expor deliberadamente a população de seu país a uma doença contagiosa que mata, intimando as pessoas a sair de casa e trabalhar como se nada estivesse ocorrendo, a não usar máscaras, a rejeitar vacinas, enquanto tentava retardar criminosamente a compra delas; 11. constituir um governo em que ministros de Estado mimetizam Hitler em lives oficiais; 12. tentar embaçar a imiscibilidade, aliás constitucional, obrigatória entre Estado e religião, desde que, é claro, seja a sua religião, a de seus apoiadores e financiadores etc etc… Enfim, há uma lista infinita de extremismos de direita que esse elemento praticou e pratica todos os dias. Se não é um extremista de direita, terei de jogar diplomas pela janela e voltar aos bancos escolares. Aliás, acho que toda a literatura da ciência política que eu conheço teria de ir junto janela abaixo. Se tentar metodicamente destruir a democracia – até urna eletrônica entrou na roda! -, utilizando métodos próprios dos fascistas para manipular as massas, e eliminar a representação institucional do Estado de Direito, não configura seu extremismo reacionário, o que configuraria? Isso não é coisa da direita, não. É extrema-direita mesmo.
Bem, antes de encerrar, quero te dizer minha satisfação pelo diálogo que por vezes travamos aqui. Saiba que, mesmo discordando num ou noutro ponto, sempre respeito quem sabe pensar – e é teu caso, porque você sabe escrever. Você é talvez o melhor texto, o de melhor qualidade gramatical, que tenho o hábito de ler na net. Não é pouco, principalmente se considerarmos que só leio os melhores… Não nos escreveremos mais até o próximo ano (afinal, ninguém é de ferro, e pra onde eu vou, não pega nem TV…), então te ensejo desde já um período de festas pleno de alegrias. Tristezas, nossa classe política nos trará fartamente em 2022.