telefone - golpe

Golpe: a opção pelo engano. Por Myrthes Suplicy Vieira

… Por volta da meia noite, o telefone toca de novo. Dessa vez, meu coração pulou no peito, angustiado. Quem será que me liga a essa hora? Só pode ter acontecido algo de ruim com alguém da minha família. Saio correndo para atender. Lá vem de novo a vozinha pretensamente desesperada da minha hipotética filha: “Mãe, preciso da sua ajuda mesmo, mãe… Teve um assalto de novo na minha casa…”

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Minha “filha” voltou a ligar ontem à noite, pedindo ajuda, depois de tanto tempo. Já tinham se passado vários meses desde sua última investida malsucedida e eu apostava que ela havia aprendido uma lição definitiva: nunca subestime a inteligência da pessoa a quem você pretende enganar, principalmente se ela for bem mais vivida do que você.

Para quem não acompanhou minha desdita quando da primeira tentativa de golpe, relembro: mesmo tendo adivinhado desde o primeiro minuto que se tratava de uma tentativa de extorsão, quando ouvi o apelo choroso de ajuda, algo se mexeu dentro de mim e senti pela primeira vez a necessidade de oferecer escuta terapêutica a uma golpista. Aquela jovem me soava tão convincentemente desorientada que me deixei sensibilizar e optei por permanecer em silêncio, sem recorrer a um discurso moralista igualmente batido, ao longo de todo o telefonema. Funcionou, é verdade, ela desligou sem saber como prosseguir, mas me deixou pensativa quanto ao meu papel na sociedade para proporcionar uma efetiva orientação psicológica aos jovens neste nosso desatinado mundo líquido contemporâneo.

Desta vez, mal ouviu meu alô, ela já emendou aos prantos: “Mãe, me ajuda!”. Respirei fundo e perguntei, como quem não se dá conta do que está acontecendo: “Quem está falando?”. Ela repetiu sem pudor a velha cantilena: “Sou eu, mãe, me ajuda por favor!”. Num ímpeto, misto de surpresa pela ousadia da moça em repetir um golpe tão manjado e de tristeza por a quadrilha ser tão desorganizada, a ponto de não riscar o número dos telefones que “deram ruim”, respondi: “De novo, minha filha???”

Ela desligou instantaneamente. Voltei aos meus afazeres, satisfeita por ter interrompido já no nascedouro mais uma tentativa burra de chantagem, mas de novo não pude deixar de mergulhar em pensamentos sombrios a respeito das dificuldades de maternagem num mundo pandêmico. Meu cérebro voltou a se questionar sem parar: O que leva uma pessoa a optar por ganhar a vida aplicando golpes? Mãe (ou pais) afetivamente ausente na vida real, falta de escola, de um guru espiritual ou de aconselhamento psicológico? Baixa autoestima ou inaceitável falha de caráter? Preguiça mental ou prazer psicopático com o sofrimento alheio? Que homens presos, já sem qualquer esperança de reinserção produtiva na sociedade, recorram a esse expediente talvez seja mais fácil de compreender, mas uma mulher aceitar utilizar seu talento dramático para denunciar e/ou se aproveitar da desigualdade de oportunidades?

Perto dos escândalos políticos que nos acabrunham todos os dias, refleti, isso não é nada. Que direito tenho eu de julgar o ânimo trambiqueiro de mulheres que nem conheço? Que sei eu da vida que essa moça leva? Se ela fosse presa, não seria dispensada de punição pelo juiz sob a alegação de furto famélico? Que tipo de sermão moralizante poderia eu articular se a falta de consciência ética e a insensibilidade social campeiam sem controle entre nós e vêm de cima? Que sei eu de tão fundamental sobre a maternidade (que nunca quis experimentar) para orientar e pretender compensar o desencanto com a vida no coração dessa moça? Aos poucos, o cansaço intelectual bateu e a programação rame-rame da tevê de sábado à noite conseguiu sobrepujar minhas apreensões. Distraí-me e esqueci o assunto.

Por volta da meia noite, o telefone toca de novo. Dessa vez, meu coração pulou no peito, angustiado. Quem será que me liga a essa hora? Só pode ter acontecido algo de ruim com alguém da minha família. Saio correndo para atender. Lá vem de novo a vozinha pretensamente desesperada da minha hipotética filha: “Mãe, preciso da sua ajuda mesmo, mãe… Teve um assalto de novo na minha casa…”

De início, fiquei agradavelmente surpresa por ela ter acrescentado um elemento novo à entediante trama. Dessa vez ela alegava não haver sido pega de surpresa na rua, os marginais que a atacaram haviam invadido sua casa. Que bom, pensei, ela deve ter ouvido meu conselho silencioso de inaugurar uma nova franquia de bandidagem. Mas o entusiasmo durou pouco. Ela mais uma vez não soube como prosseguir diante do meu silêncio. O rancor começou a crescer no meu peito.

O que me incomodava nem era tanto o susto naquela hora incômoda. Era a falta de inteligência e de sagacidade da moça. Para sobreviver na malandragem, pensava eu pela enésima vez, é preciso ter flexibilidade e agilidade mental, prever e se adiantar a uma eventual reação inusitada da vítima, deixar no ar outras deixas que reforcem a credibilidade quanto ao próprio desamparo. E a pessoa que me abordava pela segunda vez no mesmo dia demonstrava não ter avançado um milímetro sequer na direção por mim pretendida. Irritada, usei da voz mais doce que consegui arranjar e disse: “Lamento, filha…Faz o seguinte, meu amor. Da próxima vez que você me ligar, tente inventar novos argumentos. Que falta de criatividade, meu bem! Você não está honrando a tradição da família! Entenda, pela última vez, que eu não tenho filhas….”

Foi o que bastou. Mais uma vez, ela bateu o telefone na minha cara, assustada. Posso apostar que mais alguns meses vão se passar antes que ela ligue de novo. E, se Deus quiser, minha pressuposta herdeira vai então saber fazer jus ao perfil de feminilidade intelectualmente sedutora que eu sempre cultuei. Espero que ela me surpreenda com um discurso parecido com: “Minha senhora, desculpe estar ligando a essa hora. Isto não é um golpe, estou realmente precisando de ajuda. Liguei para a senhora antes de falar com a polícia porque uma amiga comum me garantiu que eu poderia contar com seu bom senso e expertise profissional…”

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 Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

4 thoughts on “Golpe: a opção pelo engano. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Anos atrás recebi um telefonema desses às duas della matina.
    Acordei assustada e realmente meu coração veio à boca porque tenho uma filha que, àquela altura, já não mais morava comigo.
    Caí direitinho na conversa pois, aturdida ainda pelo sono, a voz da moça me pareceu de fato ser a da minha filha.
    Até que… talvez incentivada pelo meu desespero, ela quis incrementar a história e tasca um “uxx caraxxx me sequexxtraram” com o maior sotaque carioca possível – sou paulistana.
    Alívio total!
    Respondi: ‘que pena, filha! Quem sabe agora você entenda quando a mamãe diz pra você não ser tão galinha e andar pela rua a essa hora não é coisa de moça de família.’

  2. Não sei se a autora leu City of Glass, que, depois da publicação original, tornou-se o primeiro conto do The New York Trilogy, de Paul Auster. É brilhante, mais até do que os outros dois contos do livro, mas o que interessa aqui, pois vem à lembrança, é aquilo que inicia a desventura do protagonista. Trata-se também de um telefonema que se repete, e para a pessoa errada. A história se desenvolve a partir da improvável aceitação, por parte de um Paul Auster escritor (que não é Paul Auster, ele mesmo), do telefonema e da demanda de um desconhecido: falar ao Paul Auster detetive particular! Ao finalmente aceitar passar-se por este, aquele assume um papel que, mesclando-se ao seu, importa para sua vida uma insanidade que, afinal, nem é assim tão diferente da sua própria. É claro que a história inteira, que aqui reduzo demais, merece uma descrição muito mais detalhista, porém, ao ler a história aqui publicada, lembrei-me de City of Glass porque me pus a imaginar o que ocorreria se a autora aceitasse o papel de mãe da trapaceira. Imagino o que aconteceria se dissesse algo como: “Olha, sei que você precisa de dinheiro, mas se você quer o meu, não deveria antes me fazer crer que, por ser tua mãe, eu deveria te ajudar? Por que você não começa me contando o que fez neste último ano em que não nos vimos?” Parece óbvio que um bom trapaceiro provavelmente apenas encerraria o telefonema (com o benefício de nunca mais ligar!); por outro lado, se continuar na linha… que risco corre alguém por levar uma conversa sem rumo com o invisível?
    Enfim, reflexões de um leitor em férias. Grato pelo artigo, que é ótimo de ler.

    1. Certa vez recebi um telefonema de um jovem de 21 anos à 1 hora da madrugada que dizia querer se matar mas não sem antes contar os motivos do seu gesto desesperado a uma pessoa totalmente desconhecida. Tentei mil vezes encaminhar o caso para o CVV mas o cara foi irredutível. Acabei aceitando ouvir em silêncio o que ele tinha a dizer. Depois conversamos longamente sobre as alternativas disponíveis para ele. Ao final de cerca de 2 horas ele me agradeceu entusiasticamente e perguntou qual era minha profissão. Quando respondi que era psicóloga o rapaz entrou em surto novamente e me acusou de usa-lo como paciente sem o seu consentimento. Pode?

    2. Brilhante resposta à questão questão. Que risco corre? De perder duas horas conversando com um idiota, além, claro, de ganhar uma madrugada mal dormida. Paul Auster escritor não teria tanta paciência assim. O livro nunca aconteceria!
      Forte abraço (e, se parte do mundo cristão, Merry Christmas; se do judaico, Happy Hanukkah, se de nenhum dos dois, Season’s Greetings!).

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