De solidariedade e de vida. Por Idalvo Toscano
…Para haver solidariedade, para haver economia solidária (campo no qual se inserem as finanças solidárias) é decisivo que os produtores populares se organizem de forma associativa, que não sejam patrões, mas parceiros, e que construam novas práticas sociais em torno de um projeto comum…
Falemos de solidariedade.
Ultimamente a palavra solidariedade tem sido empregada abundantemente. Isso é bom, porquanto difunde a ideia de que não devemos ser indiferentes ao que ocorre à nossa volta. Todavia, o sentido que se lhes atribuem é errôneo.
Consultando a origem da palavra encontramos para solidário, do latim solidu, sólido. Portanto, solidariedade seria “a qualidade do que é solidário; reciprocidade de interesses e obrigações”.
Visto desse ângulo, a solidariedade não tem o caráter caritativo, benemerente, piedoso e de compaixão que vulgarmente lhes estão conferidas.
Assim, é a reciprocidade de interesses e obrigações que faz com que esta relação seja sólida e só há solidez se houver reciprocidade: eu existo em uma comunidade, sou responsável pelo destino da mesma e sei que todos se sentem responsáveis, também, pelo meu destino.
Portanto, apenas existe solidariedade quando ela se esparrama em direção a todos, pelo mundo e pela vida.
Não cremos que sejam solidários comportamentos que se restringem a um universo de iguais – agremiações, sindicatos, grupos e classes sociais; mas asseveramos como sendo solidárias práticas cujos efeitos buscam alcançar a totalidade da existência humana.
No campo das finanças, alguns tipos de atividades fazem chegar aos empobrecidos recursos que lhes são vitais, mas, por mais importante que isso seja, não se trata de práticas solidárias; refiro-me aos atuais programas de “microcrédito” ou créditos ao “empreendedorismo” praticados pelos bancos regulamentados.
Não negamos a importância desses programas, normalmente vinculados aos bancos oficiais – CEF, Banco do Brasil, BNB etc. Todavia, não são programas “desenhados” para o atendimento das necessidades das comunidades mais pobres cujas iniciativas voltam-se a pequenos empréstimos e tem fulcro nas atividades territorialmente circunscritas, o bairro onde se encontram.
Os grandes bancos não desenvolveram tecnologia para este tipo específico de de empréstimo ou não o fazem de forma compatível com os objetivos específicos das exigências do comércio local, pelo simples fato de não deterem o conhecimento da “cultura comunitária” onde, muitas vezes, algumas estratégias são bem diferentes das técnicas bancárias convencionais e repousam na confiança construída na vivência comunitária. Embora cada vez mais rarefeita é real a existência de compadrio entre as famílias.
Destaca-se como iniciativa exitosa o “Banco Palmas”, Fortaleza, Ceará: “É um banco comunitário brasileiro, conhecido formalmente como um “banco comunitário de desenvolvimento” ou BCD, fundado em 1998 no Conjunto Palmeira, um bairro que à época contava com 25 mil habitantes, localizado na periferia de Fortaleza. Opera sob o princípio da economia solidária. Há um vasto material disponível em vários sites. A partir do Palmas, tem início a formação da Rede Brasileira de Bancos Comunitários (https://bit.ly/3oT4Xx9).
No nosso entendimento finanças solidárias são aquelas que reúnem, em torno dessa prática, a comunidade que, não só se beneficia de créditos, mas que contribui com seus poucos recursos para que outros possam também se beneficiar.
Do mesmo modo, não basta que a comunidade participe das estratégias financeiras coletivas, mas que tenha um horizonte que compreenda a consolidação dessas práticas como o início de um novo processo de produção e reprodução da vida.
Uma iniciativa estimulante de solidariedade comunitária é representada pelo “Banco de Sementes” ou “Sementes da Paixão” de iniciativa da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, na região da Borborema, Pb.
Criado há mais de 45 anos o “Banco de Sementes” tem o objetivo de recuperar sementes criolas, estocando-as e, à época do plantio, “emprestando-as” aos pequenos agricultores que, em troca, quando da colheita, restitui a quantidade que tomou emprestada acrescida de uma quantidade – “juros” – que se presta a aumentar o “capital” do banco e ampliar seu atendimento.
Isto é muito importante, pois protege o agricultor da especulação dos atravessadores, já que a incerteza do regime pluviométrico traz uma significativa elevação no preço das sementes pelo afluxo de demanda quando, enfim, começam as chuvas. Lembremo-nos que é muito oneroso para uma família de baixa renda comprometer seus escassos recursos antecipando a compra de semente para o plantio.
Temos, assim, não somente uma estratégia de combate às estruturas de empobrecimento daquelas populações utilizando-se de processos de autofinanciamento, como a recuperação de sementes nativas da região, afeitas ao clima e condições naturais da região.
Nesse sentido, é importante que o respeito à natureza esteja presente. A solidariedade passa por não produzir bens que destruam recursos do meio-ambiente, a não consumir produtos nocivos à saúde, a denunciar a exploração do trabalho infantil, a exploração sexual de menores, não consumir produtos de fábricas que não respeitem os direitos trabalhistas etc.
Mas não apenas isso: não podemos considerar como práticas financeiras solidárias aquelas que incorporam a cobrança de juros monetários extorsivos, que penalizam aqueles que não conseguem pagar seus compromissos, que constrangem os que necessitam de recursos e, principalmente, aquelas que se revestem de impessoalidade no trato com os produtores populares.
Para haver solidariedade, para haver economia solidária (campo no qual se inserem as finanças solidárias) é decisivo que os produtores populares se organizem de forma associativa, que não sejam patrões, mas parceiros, e que construam novas práticas sociais em torno de um projeto comum.
Não, ser solidário é um conceito amplo e compreende uma prática de vida, inclusive no campo das finanças. Mas isso não é algo que se alcance de imediato em um mundo extremamente competitivo e marcado pelo individualismo; é um processo histórico, mas que se não tiver início de imediato, não florescerá no futuro.
Solidariedade somente existe enquanto relação social, via de múltiplas mãos.
Há saídas.
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– Idalvo Toscano – Economista, com formação em Planejamento Urbano pela FGV/SP. Funcionário público aposentado do Banco Central do Brasil.
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Obrigada pelo artigo. Desconhecia essas iniciativas solidárias.