Pandemia e perdas. Por Meraldo Zisman
… Na estrada da vida o mortal deixará pegadas da sua passagem. E se somos obrigados a deixar pegadas, que procuremos permitir as melhores que podemos perpetrar. O diferente dos anjos (se é que existem), a pista desse nosso andar vai depender de nós mesmos…
Luto é o sentimento ao se perder uma pessoa amada. É identificar-se com ele (a), a partir de dentro. Somos obrigados a apartar. A morte é uma das únicas das coisas certas que não podemos evitar. A outra é trocar de pai ou mãe, que nos gerou. Morrer é parte da existência, o que nos provoca intensa dor da falta, definitiva.
Diante da morte lembramos que a vida nos é emprestada. É quando o mais simplório dos mortais vira filósofo. Torna-se até pensador de algo que sabemos mais cedo ou mais tarde vai acontecer… Compreensivo este anseio desde que a ideia da morte e o medo que ela inspira perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa.
Por outro lado, dizem que os anjos não deixam rastros. Eles vieram à Terra com uma missão.
As pessoas. Não. Na estrada da vida o mortal deixará pegadas da sua passagem. E se somos obrigados a deixar pegadas, que procuremos permitir as melhores que podemos perpetrar. O diferente dos anjos (se é que existem), a pista desse nosso andar vai depender de nós mesmos. Podemos escolher os nossos caminhos. Livre arbítrio, para os religiosos. Mas vamos a meu ofício de psicoterapeuta.
Costumo dizer às criaturas que me procuram quando da perda de um familiar:
— Faça um luto construtivo.
— O que é isto, luto construtivo?- indaga, surpreso, geralmente o enlutado.
Valho-me, então do que escreveu Santo Agostinho (354-430), muito embora não seja pessoa religiosa.
“… Deem-me o nome que você sempre me deu; fale comigo como você sempre fez; continuemos a rir junto; sorria; pense em mim. Você que ficou— siga. A vida continua bela, como sempre foi e será”.
E contínuo, após breve pausa:
— Quando se lembrar da pessoa falecida recorde-se das coisas boas que juntos viveram. Perder ou ganhar é/faz parte da vida. Da Natureza das coisas. O tempo da vida é o tempo da memória.
Isso é que denomino de luto construtivo, e concluo.
Não ignoro que no luto somos habitados não somente pela dor, não poucas vezes pelo ódio contra o morto, e também por sentirmos ódio.
Somente os confundidos agravam a dor que lhe causam a perda de um próximo por acesso de acusações obsessivas, nas quais a psicanálise descobre vestígios de ambivalência afetiva [amor-ódio] de outrora, dizia o velho Sigmund Freud em seu livro–Totem e Tabu.
O mais interessante que na oração aos mortos dos judeus (o Kadish) não existe a palavra morte, a ênfase desta oração é glorificar a Vida. A negação da morte revela-se como causadora de grande parte do comportamento ocidental contemporâneo, mesmo com todas os avanços tecnológicos.
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Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Álvaro Ferraz.
FORMIDÁVEL, Dr. Meraldo, já que, nos escancarou a morte como ‘o grande relógio da vida’, quando o Tempo nos deu tanto, entre os queridos, o tempo muito nos ofereceu e, mas, nos roubou os minutos das horas que, poderiam e deveriam ter se prolongado ainda mais.
Parabéns! E, muito obrigada.