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Historiador narra o pacto entre nazistas e soviéticos em livro. Por Paulo Nogueira

HISTORIADOR NARRA O PACTO ENTRE NAZISTAS E SOVIÉTICOS EM LIVRO

Tratado de não agressão entre Hitler e Stalin abriu caminho para o início da 2º Guerra Mundial

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, EDIÇÃO DE 13 DE MARÇO DE 2021

 

Numa era de tal polarização que cada lado só vê o que quer ver (geralmente, miragens), de cancelamentos, pós-verdades, fatos alternativos e fake news, uma vacina com eficácia de 100 por cento é ler historiografia. Pois, por incrível que pareça, a história não começou ontem, e nem mesmo com o WhatsApp.

ProtestoProtesto em Siauliai, na Lituânia, em 1989, relembra os 50 anos do pacto Nazi-Soviético com bandeiras dos países bálticos sobre caixões em baixo das bandeiras nazista e soviética Foto: Rimantas Lazdynas/Editora Objetiva

O Pacto do Diabo, de Roger Moorhouse, é um antivírus do fanatismo, passando a pente fino o tratado de não agressão de 23 de agosto de 1939 entre a URSS e Alemanha nazista. Foi assinado em Moscou, sob um retrato de Lênin na parede e com a presença de Stálin e dos ministros das Relações Exteriores dos respectivos países, Molotov e Ribbentrop. Rolou um belo regabofe: caviar, champanhe e um jantar de gala com 24 pratos, e uma sessão de O Lago dos Cisnes.

Pelo mundo afora, o pacto embasbacou tanto a direita quanto a esquerda, já que fascismo e comunismo eram teoricamente antípodas ideológicas, e não farinha do mesmo saco antidemocrático e totalitário. Como o próprio Stálin rosnou, ao brindar à saúde de Hitler: “Temos jogado baldes de merda na cabeça uns dos outros, e agora nossos publicitários precisam convencer o povo que tudo foi esquecido e perdoado”. Nove dias depois a Wehrmacht invadiu a metade oeste da Polônia, iniciando a II Guerra Mundial, e em seguida o Exército Vermelho anexou irmãmente a outra metade.

Inúmeros comunistas ocidentais, enojados com o mico, deixaram os PCs, no maior êxodo partidário antes da invasão soviética à Hungria, em 1956, e do esmagamento da Primavera de Praga, em 1968. Houve, claro, muitos que só deram um sorriso amarelo, como o historiador Eric Hobsbawn. George Bernard Shaw derreteu-se: “Hitler está agora sob a poderosa influência de Stálin, cuja predisposição para a paz é impressionante”. Já George Orwell chutou o balde: “Esse pacto minou não só o básico apelo ‘antifascista’ do comunismo, mas também sua queixa contra o status quo. E os comunistas, que no passado amaldiçoaram seus governos burgueses por apaziguarem Hitler com sórdidos arranjos, agora são obrigados a defender Moscou por ter feito a mesma coisa. O resultado é completa destruição da ortodoxia de esquerda”.

Em 1984, um mudança oportunista de alianças obriga o herói Winston Smith a fazer horas extras para reescrever os jornais e simular que aquela amizade sempre existiu. Na trilogia Sword of Honor, de Evelyn Waugh, o protagonista resmunga: “Todo disfarce foi abandonado”. Outro que fez caretas de asco foi Bertold Brecht, não propriamente uma vestal. Enquanto isso, em Munique, o jardim da sede do Partido Nacional-Socialista ficou juncado de insígnias, suásticas e distintivos jogados por nazistas não menos nauseados.

Para Hitler, o acordo permitia atacar tranquilamente a Europa Ocidental, sem se preocupar com ameaças do leste – e recebendo “commodities” russas (cereais, metais, petróleo) a preços de Black Friday. Para Stálin, as vantagens eram a expansão da “esfera de influência” soviética, a transmissão da tecnologia bélica alemã e a regeneração do Exército Vermelho, dilacerado pelos expurgos promovidos pelo próprio ditador comunista na década de 30, que ceifaram os oficiais mais competentes. Stálin também devolveu a Hitler um número substancial de comunistas alemães que tinham se refugiado na URSS após a tomada de poder pelos nazistas. Alguns deles, presos em solo russo durante os expurgos stalinistas, foram direto do Gulag para os campos de concentração hitlerianos – caso da escritora Margarete Buber-Neumann.

E havia, ainda, o “protocolo secreto”, que Moscou se recusou a admitir até 1989 (e que Putin considerou “imoral, mas compreensível”). Essas cláusulas ditavam não apenas a partilha da Polônia, mas também que os estados bálticos, então independentes (Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia), mais partes da Romênia, cairiam no colo do Kremlin. Desde 2009, a pedido dos países bálticos, que só recuperaram sua soberania em 1991, é celebrado na União Europeia o Dia das Vítimas do Stalinismo e do Nazismo.

Alguns articulistas cornetaram que Moorhouse dá mais espaço às atrocidades comunistas que às nazistas. A meu ver, há no livro carnificinas suficientes – e soa plausível a alegação de que a barbárie hitleriana ainda é muito mais conhecida que a stalinista. Quem nunca ouviu falar de Auschwitz, mas quantos sabem de Kolima, um dos campos de concentração do Gulag? Como disse Tzvetan Todorov: “A vida perdeu para a morte, mas a memória ganha seu combate contra o nada.”   E os retratos individuais de Pacto do Diabo são magistrais, como os de Ribbentrop e Molotov, dois bajuladores de um quilométrico cordão de puxa-sacos dos autocratas de bigodão e bigodinho.

Entre as numerosas ignomínias mútuas avulta o massacre na floresta de Katyn, em maio de 1941, quando 22 mil poloneses (entre prisioneiros de guerra, professores, padres e intelectuais) foram sumariamente fuzilados e lançados a uma mefistofélica vala comum. Depois da guerra, alemães e soviéticos empurraram a batata quente de um para o outro. Hoje, a responsabilidade está estabelecida: a ordem partiu de Béria, então chefe da polícia secreta de Stálin.

Apesar da sua proverbial astúcia, Stálin confiou tanto em Hitler que ignorou 47 alertas militares e diplomáticos sobre a cada vez mais iminente “Operação Barbarossa” – a traição nazista com a invasão da URRS pela Wehrmacht em junho de 1941, quase dois anos depois da assinatura do tratado Molotov-Ribbentrop.

O pacto legou também outra consequência duradoura, de ordem conceitual: a ideia da correspondência essencial entre comunismo e fascismo. Sem falar na afinidade totalitária (já assinalada por Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo”), há os sistemáticos crimes contra a humanidade (como definiu memoravelmente André Frossard, “há crime contra a humanidade quando se mata alguém sob o pretexto de que ele nasceu.”

 No curso de algumas décadas, os regimes comunistas mataram dezenas de milhões de pessoas. Estima-se que na URSS houve 20 milhões de mortes, na China 65 milhões e mais 6 milhões no Camboja, Coreia do Norte, Vietnã e Europa Oriental (total: 96 milhões). Os nazistas mataram menos (25 milhões), mas é verdade que os comunistas começaram mais cedo e duraram mais.

A diferença desses genocídios calculados e deliberados está no anátema das vítimas dos dois regimes: um, baseado na “raça”; o outro, na “classe social”. Sem querer passar um pano infame na infâmia, talvez apesar de tudo subsista um – quem sabe bizantino na prática – contraste, como notou o saudoso Tony Judt. Ou seja, aquele entre um regime que exterminou pessoas na busca desumana de um objetivo arbitrário, e outro cujo objetivo foi o próprio extermínio.

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*Paulo Nogueira é autor de ‘O Amor é um Lugar Comum’ (Intermeios)

2 thoughts on “Historiador narra o pacto entre nazistas e soviéticos em livro. Por Paulo Nogueira

  1. Compartilhei para amigos que gostam de História, sem serem da área, que nem eu. Sempre me indago porque li praticamente tudo de Tolstoi, que viveu nos tempos dos czares. Sem O Capital de Karl Marx, que não li, o século XX teria tido um curso histórico menos genocida?

  2. Um amigo me agradeceu tanto pelo seu artigo, que tive coragem de levá-lo ao Facebook, hábito que não tenho, pois me resguardo de redes sociais! A Imprensa escrita tem apagado a história dos genocidas e genocídios do século XX. Tenebroso quando vi um sobrinho em redes sociais elogiar um deles. Recebia lavagem cerebral na Universidade, como milhares de jovens recebem até hoje.

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