O Pregador no nariz. Por José Horta Manzano
O PREGADOR NO NARIZ
JOSÉ HORTA MANZANO
Para mostrar desconforto com a ideia de reeleger o presidente, muitos garantiram que iriam votar calçando luvas. (Note-se que eram tempos pré-covid.) Outros, para deixar claro o nojo, consentiam dar o voto a Chirac, mas garantiam que entrariam na secção eleitoral com o nariz apertado por um pregador de roupa.
O dia 21 de abril de 2002 ficou gravado na memória dos franceses. Pelas 8h da noite, quando foi divulgada a boca de urna do primeiro turno das eleições presidenciais, a estupefação foi geral.
Em primeiro lugar, sem surpresa, apareceu Jacques Chirac, o presidente de direita que tentava a reeleição. Conseguiu 19,9% dos votos. O susto veio a seguir.
Em segundo lugar, na posição em que se imaginava ver o candidato de esquerda, classificou-se Jean-Marie Le Pen, o candidato de extrema-direita. Abocanhou quase 17% dos votos. Foi um deus nos acuda, que ninguém esperava tal resultado.
Os dois candidatos passaram ao segundo turno. Nas duas semanas que se seguiram, a campanha pegou fogo. Todos os partidos – de direita, de centro, de esquerda, sem exceção – pediram aos eleitores que votassem em Chirac a fim de impedir a eleição do candidato da extrema-direita.
Boa parte dos franceses não gostava do presidente Chirac e não queria vê-lo reeleito. Porém, ante a ameaça de ter um populista no Palácio do Eliseu, resignaram-se. Para mostrar desconforto com a ideia de reeleger o presidente, muitos garantiram que iriam votar calçando luvas. (Note-se que eram tempos pré-covid.) Outros, para deixar claro o nojo, consentiam dar o voto a Chirac, mas garantiam que entrariam na secção eleitoral com o nariz apertado por um pregador de roupa.
As autoridades eleitorais foram logo alertando para o perigo: que ninguém ousasse as luvas ou o pregador, porque seria sumariamente expulso do rinto.
Não sei se alguém ousou, mas o fato é que, no segundo turno, Chirac foi reeleito com espantosos 82,2% dos votos – um resultado soviético. Le Pen, o líder da extrema-direita, só conseguiu um ponto percentual a mais do que já tinha obtido no primeiro turno. Um vexame histórico.
Lembrei desse episódio ontem, quando o Lula deu um grande passo em direção ao recobro dos direitos políticos. Sem ser idêntico ao da França de 2002, o quadro político brasileiro guarda certa semelhança. Mas é como um teatro pelo avesso, em que o desafiante é quem surge no papel de homem providencial, único capaz de desalojar o extremista que ocupa a Presidência.
Com ou sem condenação, Lula da Silva arrasta um passivo pesado. Noves fora pendengas e querelas judiciais, nosso guia patrocinou o maior assalto ao erário que já se viu na história do Brasil. Tome-se a palavra ‘patrocinou’ como se quiser. «Tanto é ladrão o que vai à vinha como o que fica à porta» – é provérbio português que resume a situação. Tanto se pode pecar por ação como por omissão.
Com um passado desses, outros não teriam a menor probabilidade ganhar. Mas o inegável magnetismo de nosso guia não costuma falhar. Considere-se que, apesar dos pesares, seu currículo registra a façanha de ganhar quatro eleições presidenciais: duas pessoalmente e duas por procuração.
Se Bolsonaro continuar a produzir barbaridades daqui até lá – o que é praticamente certo –, Lula da Silva tem excelentes chances de voltar ao Planalto em 2022.
Será até bom que o STF se pronuncie desde já sobre a entrada de eleitores na secção eleitoral com um pregador a espremer-lhes as narinas. Perigam ser numerosos.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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