Vermelho Sangue Mulher. Por Marli Gonçalves
Que o vermelho do sangue de todas ao menos nos una nessa batalha. Especialmente me dirijo às mulheres, apelando à sua sensibilidade sempre mais aflorada. Somos mais da metade da população. E, como mulheres, porque entendemos o que significa, porque sabemos o que é, do que exatamente trata e de como nos sentimos nesses dias, temos a obrigação de reagir fortemente ao veto desse ser, desse governo maldito, à distribuição de absorventes higiênicos às meninas, às mulheres pobres, das ruas, dos presídios. Mais de cinco milhões de mulheres foram atingidas pela insensibilidade que marca esse triste momento do país, governados por gente que constantemente nos desrespeita e que parecem nos odiar
Dormem nas ruas, jogadas no chão, ao lado de ratos, ratos homens e ratos bichos, o sangue escorre e elas não têm nem ao menos como se lavar. O sangue chega a coagular em suas pernas, atrai animais, insetos, causa infecções que as adoecem e matam. Não têm direito a um mínimo de dignidade, dependem da generosidade alheia e da sua própria força pela sobrevivência. Pão! Li que algumas usariam miolo de pão para conter a menstruação. Tá. Se não têm muitas vezes nem o pão para se alimentar! Usam qualquer coisa que acham nas ruas, jornal, panos velhos. A realidade não é como na literatura de mulheres libertárias que propõem deixar escorrer o sangue da menstruação como marca da força feminina. Estas têm água para se lavar, suas teses para defender, e seu sangue é usado como força; têm casa, comida, roupa lavada.
As mulheres, nas ruas, acabam por terem infecções terríveis, não sendo raro perderem seu sistema reprodutivo. Nos hospitais e postos de saúde muitas vezes, tal é a situação se encontram quando chegam, cheiro forte, que causam nojo e pouco são tocadas, cuidadas, atendidas. Essa é a realidade.
Estudantes pobres, no sistema público – só elas somam quatro milhões no Brasil – perdem aulas – não vão às escolas porque não têm como se proteger nesses dias, como fazer higiene e como conter a vergonha diante de todos.
Um assunto escancarado durante a pandemia que fez ainda mais pobres e miseráveis, o custo desse item tão básico e tão importante da higiene – absorventes menstruais – os tornou inacessíveis a muitas mulheres, mais do que já eram, muitas já obrigadas a usar toalhinhas ou chumaços de algodão e papel higiênico como nossas antepassadas criativamente faziam; quando podem, claro. Porque nem isso mais é possível para muitas.
O veto de Bolsonaro ao projeto de lei que finalmente daria alguma dignidade e fim a essa situação que perdura há tantos anos – pobreza menstrual – é de uma covardia, maldade, violência, quase incapaz de ser descrita em palavras. Por tão pouco se faria tanto, tão bem. Mas esse governo masculino, incorreto, incapaz, tenebroso, cruel, parece não ter limites em sua caminhada nos levando ao horror. Dizem que não tem dinheiro, ousam dizer que não têm recursos para tal que, pelos cálculos do projeto, custaria pouco mais de 80 milhões de reais por ano, em média 7 milhões de reais por mês, distribuindo (só, mas ajudaria) oito absorventes por mês, a 1 centavo cada. Seria dirigido às necessitadas, moradoras de rua, estudantes de baixa renda e distribuídos nas cestas básicas distribuídas pelo Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). As receitas viriam do programa de Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). No caso das presas, os recursos viriam do Fundo Penitenciário Nacional.
Agora aguardamos – exigimos – que esse veto seja derrubado pelo Congresso, o mínimo que podem fazer, e para o qual estaremos atentas.
Não têm dinheiro? Alegam que seria crime de responsabilidade fiscal? Ah, mas para fazerem passeios de motocicleta, viagens com pencas de assessores por aí, gastarem seus cartões corporativos, pagarem salários gordos, roubar e deixarem roubar, mandarem seus dólares para paraísos fiscais, comprarem e mandarem o Exército fabricar remédios ineficazes que empurraram nos doentes, para isso nunca falta. Onde anda a Justiça e sua balança sempre pendente para um lado só?
Indignos, cuidam das rachadinhas em seus gabinetes, ironicamente. De lá, de suas decisões malditas verte o vermelho do sangue, menstrual ou não, de tantos brasileiros e brasileiras, vermelho que dizem e repetem – como bobos – não quererem na bandeira nacional, mas que cada vez mais a mancha.
E mancha de sangue é difícil de tirar. De nossa memória, não sairá. Eles não perdem por esperar.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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Marli, queria lhe desejar boa noite, mas a indignação não me deixa ficar tranquilo.
Gostei muito do artigo, Marli. Muito bem! Forte, vigoroso, justo. É reconfortante saber que você não acompanha tudo o que chumbo gordo publica. Dias atrás, num artigo aqui presente, alguém que não costumo ler deu-se o direito de escrever isto:
“O debate envolve correntes que pregam de um lado a valorização do gestor público eficiente enquanto o outro lado enaltece a cultura assistencial populista como solução mais convincente perante o eleitorado. Entre um modelo e outro repousa a dúvida que nos persegue desde os anos 60 e permanece travando o ingresso do Brasil na modernidade (..) sic.”
Que bom que não é você escrevendo! Alguém precisa dizer (e você, com sua escrita, o faz) que políticas assistenciais – ou nossa “cultura assistencial populista”, como tristemente se lê ali – não se encontram entre aquilo que “permanece travando o ingresso do Brasil na modernidade”! Bem ao contrário, políticas como a dessa distribuição de absorventes a mulheres pobres são legitimamente parte de uma cultura assistencial muito benvinda, necessária, nada populista, mas popular, como também o são as políticas para distribuição de alimentos, acesso a moradias, a gás, à eletricidade, etc., destinadas a gente muito pobre. Para além de quaisquer convicções políticas, ser humano implica viver assim, sabendo que outros humanos – não importa a cor, a origem, o estado econômico, a religião, ou a ausência dela – também têm direitos naturais e elementares, e ninguém, nem mesmo o “gestor público eficiente”, tem o direito de negá-los em nome de qualquer racionalidade econômica. O que “permanece travando o ingresso do Brasil na modernidade” é, por isso mesmo, a avareza, a ignorância, a desumanidade, a crueldade de quem julga que o Estado jamais deve assistência a gente miserável que precisa implorar nos fundos dos açougues por uns pedaços de ossos que deem algum gosto ao caldinho com o qual tenta aplacar a fome. Isso parece justo? Parece justo que o Estado dê as costas a quem precisa de ossos??? Parece justo que o Brasil seja o maior exportador de alimentos do mundo quando milhões entre sua população precisam coletar comida no lixo para sobreviver? O que nos mantém longe da modernidade não é, pois, o povo pobre que depende do Estado para comer, ou ter higiene íntima decente, mas os milhões de dólares que os muito ricos – tipo Dr. Paulo Guedes ou Dr. Campos Neto, por exemplo – multiplicam em paraísos fiscais enquanto manejam, com o propósito e a técnica dos “gestores eficientes”, a destruição da economia nacional, e a dos pobres que, por acaso, vêm junto. O que mantém o Brasil cada vez mais longe da modernidade é o monstro coletivo de má-fé, ignorância e desumanidade que, com seus votos, instalou Bolsonaro naquela poltrona. E pode até dizer que sente vergonha dele agora, mas, se necessário, voltará a preferi-lo a qualquer candidato da esquerda. Anote aí.
Bem, é isso, Marli. Agradeço pelo espaço para o desabafo e pelo teu texto cheio de vida, de sangue quente e de necessária indignação. Diante desse espetáculo de desumanização que vivemos todos os dias, é bom saber que você se mantém entre nós, os que ainda preferimos as pessoas às coisas, a dignidade à economia-acima-de-tudo.
Com tristeza e desalento concordo com seu artigo. Uma vergonha o governo alegar que não tem dinheiro.