Sean Goldman e a Convenção de Haia – O que ainda ficou por dizer
Por Ivone Zeger*
A triste conclusão é que não há vencedores nesse lamentável episódio. Mas há responsáveis, sim: autoridades brasileiras que – ao contrário das americanas – não trataram com a devida atenção e respeito um acordo internacional…
O caso do menino Sean Goldman, devolvido a seu pai americano, David Goldman em 2009, despertou paixões e muita polêmica. Contudo, parece-me ser um serviço de utilidade pública rever o assunto à luz da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Sequestro de Menores. Embora tenha sido incessantemente citada e invocada ao longo de todo o processo relativo ao menino, a Convenção foi alvo de interpretações esdrúxulas e distorções que contribuíram para prestar um desfavor à população. Em meio à tanta desinformação, os brasileiros que se encontram na dramática situação de tentar reaver um filho ilegalmente levado a outro país podem acabar desconhecendo os importantes mecanismos que a Convenção oferece para ajudar a solucionar casos como esses – de acordo com levantamento feito pela Advocacia Geral da União, há 63 pedidos de devolução de crianças brasileiras mantidas no exterior que ainda estão sem solução. No Brasil os números são também assustadores. Batalhas entre a mãe e o pai desses filhos nascidos em outros países e que se digladiam em Cortes do Brasil e dos países de nascimento da criança, já se tornaram corriqueiros em nossos tribunais.
O episódio envolvendo Sean começou em junho de 2004, quando ele, na época com quase quatro anos da idade, fez uma viagem de férias para o Brasil em companhia de sua mãe, Bruna, então casada com o pai do menino, David Goldman, com quem residia nos Estados Unidos. Durante a viagem porém, Bruna decidiu não retornar para os EUA. A explicação do que ocorreu a seguir é dada pelo advogado João Paulo Lins e Silva, que posteriormente iria se tornar marido de Bruna e padrasto de Sean. Em carta aberta publicada em jornais em março de 2009, Lins e Silva afirma que: “durante o prazo autorizado pelo americano para Bruna aqui ficar em conjunto com seu filho, requereu perante a Justiça Brasileira a guarda provisória de Sean, que foi prontamente concedida”. Mais adiante, ele acrescenta: “o americano (David), por sua vez, não mais se interessou em conversar com Bruna amigavelmente. Procurou um escritório de São Paulo e através dos mesmos (sic) ingressou, meses após a vinda de Bruna, com uma ação alegando sequestro internacional!! Como se a mãe pudesse pedir resgate ou estar em lugar não sabido”.
…sequestro é uma tradução não muito correta da palavra inglesa “abduction”, que, no caso da Convenção, refere-se à transferência ilícita de crianças. Embora a palavra sequestro apareça na tradução brasileira do título da Convenção, fica claro, após analisar seu conteúdo, que a mesma não se refere a sequestro conforme a tipificação dada a esse crime por nosso Código Penal.
É aqui que entra a Convenção de Haia, da qual o Brasil se tornou signatário por meio do Decreto Presidencial nº 3.413, de 14 de abril de 2000. No Artigo 1º da Convenção, fica estabelecido que seu objetivo é “assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente”. Observe-se que não é mencionada a palavra “sequestro”.
Por quê? Porque sequestro é uma tradução não muito correta da palavra inglesa “abduction”, que, no caso da Convenção, refere-se à transferência ilícita de crianças. Embora a palavra sequestro apareça na tradução brasileira do título da Convenção, fica claro, após analisar seu conteúdo, que a mesma não se refere a sequestro conforme a tipificação dada a esse crime por nosso Código Penal. Portanto, a observação de Lins e Silva quanto a “resgate” e “lugar não sabido” não se justifica, pois uma criança pode ter sido transferida ilicitamente mesmo que não haja pedido de resgate e mesmo que seu paradeiro seja conhecido.
E o que seria a transferência ou retenção ilícita de um menor? A Convenção fornece a explicação em seu Artigo 3º, o qual estabelece que o ato ilícito ocorre quando há violação do direito de guarda, atribuído individual ou conjuntamente pela lei do Estado na qual a criança residia antes de sua remoção. Como Bruna ainda era casada com David quando veio ao Brasil com Sean, a guarda do menino pertencia aos dois. Qualquer contestação a respeito deveria ser feita nos Estados Unidos, local de domicílio de Sean, David e da própria Bruna. A decisão da justiça brasileira, mantida em mais de uma instância, de conceder a guarda à mãe, contraria a Convenção de Haia. O Artigo 17 estabelece que essa concessão, feita no país onde a criança está sendo retida ilicitamente, não poderá servir de base para que o retorno do menor seja negado. A Convenção também admite a possibilidade de que a devolução da criança seja negada, caso haja provas de que isso implica expor o menor a perigos de ordem física ou psíquica (Artigo 13). Contudo, não foi cabalmente comprovado que Sean estivesse correndo esse risco.
Com a morte de Bruna, a situação complicou-se ainda mais. A partir daí, o que estava em jogo não era apenas a guarda do menino, mas o poder familiar – ou seja, os direitos que pais e mães biológicos têm em relação a seus filhos. Como David nunca perdeu nem abriu mão de seu poder familiar sobre Sean, era ele – e não a avó materna, nem muito menos o padrasto – que deveria ficar com o menino. A possibilidade de que Sean continuasse no Brasil sob a alegação da existência de laços afetivos entre ele e a família brasileira, prevista tanto pela Convenção quanto por nossa legislação, suscita uma questão complexa, para dizer o mínimo. Afinal, os laços se formaram devido à permanência prolongada do menino em território brasileiro e consequente afastamento do pai, o que ocorreu devido à morosidade do judiciário em aplicar a Convenção de Haia logo no início.
A triste conclusão é que não há vencedores nesse lamentável episódio. Mas há responsáveis, sim: autoridades brasileiras que – ao contrário das americanas – não trataram com a devida atenção e respeito um acordo internacional cujo objetivo é exatamente tentar evitar, ou pelo menos reparar, o sofrimento e a injustiça resultantes de situações como essas.
- Ivone Zeger – Advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP; é autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas” e “Família: Perguntas e Respostas” – www.ivonezeger.com.br