Terra de bandido. Por José Horta Manzano
TERRA DE BANDIDO
JOSÉ HORTA MANZANO
A notícia estava na Folha de SP:
«Uma mulher foi tomar a vacina contra a Covid-19 hoje, em Maceió. Ao se posicionar para receber o imunizante, a funcionária responsável pela vacinação inseriu a agulha no braço dela, mas não pressionou o êmbolo da seringa.»
A informação segue e explica que um parente estava filmando a cena e captou tudo com o celular. Estava registrada a prova incontestável. A família foi falar com a responsável, que pediu desculpas e se propôs a reaplicar a vacina. A paciente tomou a vacina – corretamente injetada desta vez –, deu-se por satisfeita e foi-se. A seguir, a funcionária foi repreendida e afastada. Segundo a supervisão, trata-se de um ‘erro isolado’.
Erro? – pergunto eu. Erro? Já se viu alguém preparar a injeção, picar o braço do paciente e ‘esquecer’ de empurrar o êmbolo? Isso não é erro, senhores. É canalhice das grossas. Ignoro a razão pela qual a funcionária terá feito isso, mas coisa boa não é. Não há de ser para aplicar em si mesma; para isso, bastava servir-se na reserva, sem que ninguém visse. Resta a hipótese (mais provável) de estar separando para revenda.
Quero tecer algumas considerações. O caso narrado pode não ter sido a primeira trapaça da funcionária. Foi o primeiro a ser documentado, mas ela pode estar fazendo isso sistematicamente desde a primeira aplicação. Isso explicaria o fato de ela não ter dado importância ao celular que filmava a cena. Tão acostumada estava com a mutreta, que não lhe ocorreu.
A cada vez que sonegou a vacina a um paciente, a funcionária expôs deliberadamente uma pessoa a risco de morte, portanto cometeu crime de tentativa de homicídio. Ao mesmo tempo, incorreu em crime de prevaricação, que é quando um funcionário retarda ou deixa de praticar ato de ofício. A essa lista, pode-se acrescentar o crime de peculato, que é a apropriação de bem público para fins de interesse pessoal.
A meu ver, essa mulher não tinha de ser apenas «afastada». Tinha de ir direto para a cadeia e lá aguardar, trancada sob 7 chaves, a instrução do processo. Solta, ela é um perigo público. Quem empurra para os braços da morte velhinhos inocentes e confiantes que pediam proteção não merece ser deixada solta, por aí, quiçá auferindo os lucros da venda das vacinas que surrupiou. Tratamento idêntico têm de receber todos os que estiverem rezando pela mesma cartilha que ela.
Sempre me perguntei se a mentalidade delinquente de boa parte da população é resultado da corrupção das classes dirigentes ou se, ao contrário, as classes dirigentes são corruptas porque são escolhidas por uma população composta, em boa parte, por delinquentes. Acho que, de certo modo, as duas afirmações são verdadeiras. A desonestidade de uns alimenta a dos outros, e assim por diante, ida e volta, num circuito fechado de bandidagem.
Eu me dou perfeitamente conta de que o que acabo de escrever é terrível. Mas, convenhamos, é o pão nosso de cada dia – como negar? O episódio das Alagoas é apenas um pouco mais sórdido do que o habitual. Mas basta percorrer os jornais nacionais e regionais para encontrar uma coletânea de fatos similares, diariamente, de norte a sul do país.
Como quebrar esse circuito miserável? Confesso que não sei. Se tivesse a receita, embrulhava pra presente e enviava a nosso diligente presidente. Ele, que não busca senão o bem do Brasil, certamente a poria em prática. Não?
Observação
Quem garante que outros funcionários tão dedicados como a anti-heroína desta história não estejam praticando a mesma mutreta? Quem garante que, mesmo quando o êmbolo é empurrado, o paciente não esteja recebendo apenas uma injeção de água? Quem supervisiona o supervisor?
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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