Monteiro Lobato não era racista! Eu, Pedrinho, garanto! Antonio Silvio Lefèvre
MONTEIRO LOBATO NÃO ERA RACISTA!
EU, PEDRINHO, GARANTO!
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE
A bisneta de Lobato está certíssima em atualizar seus livros para que continuem a ser lidos e adorados pela infância e não transformados em peças de museu!
Lamentável editorial da Folha de S. Paulo deste domingo 27/12, sob o título “O racismo de Lobato” e o subtítulo “Mostras claras de preconceito nas obras infantis devem ser contextualizadas, não suprimidas”.
A respeito da polêmica que, há alguns anos, vem sendo levantada por alguns “politicamente corretos” que veem racismo nos livros infantis de Monteiro Lobato, por causa de uma ou outra frase dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo, chamando a Tia Nastácia de “negra de estimação” ou termos assemelhados onde consta a palavra “negra’, o editorialista parece ignorar que se trata de diálogos de um livro infantil, repleto de provocações, em especial por parte da desbocada boneca Emília. Levar isso ao pé da letra, com se fosse manifestação de racismo por parte do autor do livro revela uma profunda e total ignorância sobre a obra de Lobato.
Quem leu todos os seus livros na infância, como eu, sabe muito bem que não tem neles nada de racismo. Pelo contrário, a personagem Nastácia é apresentada como uma pessoa sábia, de enorme simpatia. E as menções ao fato de uma personagem tão positiva ser de cor negra são, ao contrário, uma demonstração de que Lobato se opunha cabalmente a qualquer preconceito vigente em sua época em certas mentes saudosas do tempo da escravatura.
Tivesse Lobato algo contra os negros teria escrito, em 1935, o seu livro O Presidente Negro, este para o público adulto, como que adivinhando ou mesmo desejando que os Estados Unidos um dia tivessem um Obama como presidente?
Fosse Lobato racista teria ele a enorme admiração pelos judeus, expressa em vários textos seus, antes da Grande Guerra e do Holocausto, quando o anti-semitismo ainda era aceito em certos círculos de direita? (Veja meu artigo sobre Lobato e os judeus).
Cleo Monteiro Lobato, sua bisneta, me garante, por tudo que ouviu e vivenciou em sua família, através de sua mãe, Joyce Monteiro Lobato, que Lobato nunca teve o mais leve traço de racismo, nem contra os negros, nem contra qualquer outra raça ou origem.
Ao contrário, era extremamente anti-racista, de mente aberta. Meu pai também, Antonio Branco Lefèvre, que foi médico e amigo de Lobato, bem como todos os amigos comuns que ele teve com o autor, nunca levantaram a menor suspeita de racismo. E é sempre bom lembrar que Lobato foi muito próximo da intelectualidade da época, que era em sua maioria de esquerda. E que ele editou toda sua obra pela Brasiliense, cujo dono, Caio Prado Junior, nunca escondeu sua ligação com o PCB, o famoso “partidão”. E se há uma coisa da qual não se pode acusar os comunistas de então é de terem sido coniventes com o racismo… (Veja meu artigo Manda chamar o Brecheret)
Sim, é verdade que, de uns tempos para cá, a moda do “politicamente correto” transformou qualquer menção à cor da pele em pecado mortal, prova de racismo. A tal ponto que houve uma tentativa (felizmente mal sucedida) de excluir o livro “As Caçadas de Pedrinho” da lista dos distribuídos às escolas por uma alusão considerada racista à mesma Tia Nastácia…
Consciente de que esse radicalismo “bom mocista” da atualidade estava criando constrangimentos à leitura de Lobato para alguns pais das crianças de hoje, sua bisneta Cleo, que desde 2018 trabalha para divulgar a obra e a memória do bisavô, tomou a iniciativa de lançar uma nova edição do clássico Narizinho através da Underline Publishing, junto com Nereide Santa Rosa. Nesta nova edição Nereide e Cleo decidiram conjuntamente fazer mínimas alterações, substituindo o qualificativo “negro” em algumas frases e mantendo o máximo do texto original.
Como explicita Cleo Monteiro Lobato, “basicamente cada vez que Lobato escreve “a negra”, colocamos o nome da personagem: Tia Nastácia. A frase “negra de estimação”, na época usada para significar que a pessoa era muito amada ou estimada, foi substituída por “amiga de infância” pois esse sempre foi meu entendimento da relação de Dona Benta e Tia Nastacia”.
Pois não é que sua iniciativa, que tem como objetivo tornar os textos de Lobato isentos de qualquer conotação negativa, para voltarem a ser lidos e amados pelas crianças de hoje, despertou uma verdadeira revolta entre certos “puristas”, que passaram a criticar a Cleo e advogar para “manter a integridade dos textos, conceitos, ideias e sonhos de Lobato que estão sendo deturpados, censurados e malversados em nome de uma pretensa atualização de seus livros”? (objetivo declarado dos “conservadores” reunidos no grupo do Facebook Filhos de Lobato).
“Discordamos que seja uma reformulação da obra, pois tentamos ao máximo deixar Lobato intacto, no conteudo e no estilo”, escreveu Cleo. E eu, Pedrinho, acrescento que o espírito lobatiano sempre foi o de estar o mais atualizado possível, a cada momento da sua vida. Tanto que nas várias edições de seus livros ele ia sempre modificando textos e ilustrações, em função da percepção de seus leitores e críticos. Com base neste critério “purista” de não alterar uma vírgula do que escreveu Lobato, para adequá-lo ao tempo presente, ele mesmo poderia ser acusado de “deturpação” das edições originais de seus próprios livros por alguns desses “críticos” atuais.
Os livros infantis de Lobato foram publicados também em quadrinhos e traduzidos para grande número de línguas estrangeiras, nas quais quem garante que foi “mantida a integridade dos seus textos”?. Sem falar nas adaptações para a TV, na primeira das quais eu interpretei o Pedrinho. Se Lobato estivesse vivo não tenho dúvida de que ele faria, sim, muitas atualizações e adaptações em seus textos como fez nos livros infantis de autores estrangeiros que traduziu para o português. Talvez muito mais até do que as poucas atualizações que foram feitas no brilhante trabalho da sua bisneta Cleo, para eliminar termos com uma conotação que hoje é vista por alguns como racista, embora nunca o tenha sido.
Lobato era um homem brilhante e aberto, sempre à frente do seu tempo. Por isso foi tão apoiado e festejado pela intelectualidade progressista brasileira que o defendeu com força contra a direita cristã e reacionária, que rejeitava seus conteúdos e punha seus livros no “index”, por considerá-los ateus e materialistas. Eu vivi esse “preconceito cristão” contra Lobato na própria pele, desprezada que foi minha atuação como Pedrinho na TV tanto no colégio protestante onde estudei, o Mackenzie, quanto no acampamento católico onde passava as férias, o Paiol Grande.
Honrar a obra infantil de Lobato é olhar para a frente, para o progresso, para a liberdade de pensar, como ele fazia, sem medo da censura, tendo como alvo a compreensão e o amor das crianças de hoje. E não fazer de seus livros apenas objeto de estudos acadêmicos, recheados de notas de rodapé, “contextualizando” a linguagem da época. Transformando-os assim em peças de um museu e fazendo do próprio Lobato uma múmia. Como aliás sugere o editorial da Folha, quando escreve que “as crianças escolham outra coisa para ler” e completando com este “finale” trágico. “Ora, se uma obra reflete uma sensibilidade ultrapassada, é natural que seja logo esquecida.”
Curiosamente, entre os “puristas” que são contra qualquer alteração nos textos infantis de Lobato destacam-se dois membros do clã bolsonarista: Sergio Camargo, o Presidente negro da Fundação Palmares que afirma nunca ter havido preconceito contra os negros no Brasil e chegou a elogiar a escravidão… e Mário Frias, secretário da Cultura que substituiu o nazista Roberto Alvim e que por enquanto só fez deixar a Cinamateca às traças e tentar acabar com a Lei Rouanet. Aposto que nenhum dos dois jamais leu Lobato na infância e ambos desconhecem totalmente que a direita cristã sempre foi contra o “ateu Lobato”. Pela lógica direitista eles deviam advogar, como a Folha, para que a obra integral de Lobato, “coisa de comunista”, seja logo enterrada.
Monteiro Lobato sobreviverá, sim, a todos os ratos e abutres que rondam a sua grandiosa obra, Pedrinho garante e a boneca Emilia deixa claro que irá puxar os cabelos e quiçá o rabo de todos eles se continuarem a falar bobagens e tentar atrapalhar o acessso de mais gerações de crianças ao Sítio do Picapau Amarelo.
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE – é sociólogo (Université de Paris), editor e livreiro. Interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do “Sítio do Picapau Amarelo” para a TV, em 1954. Veja no Museu da TV.
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Discordo até o tutano dos meus ossos de Dna. Cleo Monteiro Lobato, em querer suavizar certas expressões usados por José Bento Renato. Não é “purismo”, não!, “seu” Pedrinho… É respeito pelo criador. Quem não gosta, simplesmente não leia: vá fazer outra coisa. No máximo, mas no máximo mesmo, esticando tudo que dá, é aceitável uma nota APÓS o final da obra, explicando esse tempos obscurantistas que vivemos, do abominável “politicamente correto”. Quanto mais se cede, mais essa gente quer. “Quem muito abaixa, acaba mostrando o ‘cofrinho'”…!