Tudo errado. Por Edmilson Siqueira
TUDO ERRADO
EDMILSON SIQUEIRA
…apesar das evidências todas, dos mais de 170 mil mortos, do sufoco que passamos, a possível reentrada forte do vírus no país, o que caracterizaria a tal da segunda onda, é recebida com o mesmo desleixo tétrico do início da pandemia…
Quando um governo enfrenta situações adversas é até normal que algumas medidas sejam tomadas de afogadilho e se revelem, em futuro próximo, como erradas. Claro que, muitas vezes, o erro pode ser corrigido e fica a lição de que, quando surgir situação semelhante, as medidas a serem tomadas não passarão por aquela que deu errado. A experiência serve para nos deixar mais… experientes, certo?
O Brasil, ou o governo brasileiro, começou enfrentando a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus de forma errada. Logo no começo, quando era apenas uma epidemia na cidade de Wuhan, mas já estava prejudicando a produção de componentes básicos de celulares provocando a quase paralisação de fábricas da LG no Brasil, eu me lembro de um bolsonarista me dizer que aquilo era mentira, que não havia gripe nenhuma e que, para não pegá-la era só desligar a televisão. O mote, como soube depois, foi inventado por bolsonaristas nas redes sociais. Já era a intenção, exposta com grande intensidade depois, de que a economia não poderia parar, fosse qual fosse a consequência. Ou seja, desde o início, o núcleo duro do governo, optou por negar a existência da doença para não tomar medidas que prejudicassem a economia.
O raciocínio é tão simples quanto mortal: se a economia parasse, as pesquisas apontariam queda vertiginosa do prestígio do governo e do presidente. Então, não importaria quantos iriam morrer, mas ninguém deveria seguir as orientações médicas, mesmo porque “a OMS é uma entidade terrorista a serviço da China uma ditadura comunista que quer dominar o mundo”. Acreditem, isso foi divulgado por aí.
Com esse começo absurdo, não se poderia esperar outra coisa em relação ao estrago que a pandemia faria no Brasil assim que se instalasse. E assim foi.
Quando os números de internados começaram a bater recordes e as mortes aumentaram, a solução encontrada pelos gênios do entorno bolsonarista foi receitar um remédio que, até hoje, não tem eficácia comprovada contra a doença. Como se sabe, a covid-19 mata um pequeno percentual de acometidos. Como a maioria sobrevive, inclusive tomando, entre outros, o remédio “milagroso” receitado pela ignorância bolsonarista, o discurso continuou – e continua até hoje – de que a cloroquina é eficaz, “mas a máfia das vacinas…”
Só que o povo percebeu que aquela história de desdenhar os preceitos médicos, de se reunir assim mesmo, de não usar máscaras, de não usar álcool para desinfecção, estava causando mortes e mais mortes. E a grande maioria resolveu ficar em casa. Sem muita gente na rua, sem gente trabalhando, muita gente começou a correr o risco de morrer de fome. Ante a iminência de uma convulsão social, o governo resolveu agir, distribuindo bilhões de reais para aqueles que estavam numa penúria maior ainda por causa da pandemia.
Claro que o teto de gastos foi completamente para o espaço, embora não ilegalmente, já que foram aprovadas leis autorizando a gastança. Com isso, o déficit público que não chegaria aos 150 bilhões de reais em 2020, já está batendo em 900 bilhões de reais.
Muita gente pode dizer que foi um gasto necessário para salvar vidas, mas parece que o erro está no exagero. Primeiro o governo pensou em dar 200 reais por alguns meses, para os que estivessem em pior situação. Aí o Congresso aumentou para 500 reais e não está bem claro até hoje se o próprio fixou em 600 ou se foi Bolsonaro que assim determinou. Ao mesmo tempo, bilhões de reais foram enviados para os estados, sem um estudo adequado de quanto cada estado necessitaria e sem obrigar esses estados a gastar esse dinheiro somente em despesas relativas à pandemia. O resultado foi um farra em cada uma das 27 unidades da federação.
Segundo Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, o governo gastou demais: “Teria de ter gastado menos. Uma coisa é ter de fazer socorro, mas a gente desperdiçou na ajuda aos Estados. Foi um volume de recursos além da queda da receita. Tem Estado que está com um caixa que nunca teve. Houve algum contrapartida dos Estados? Exigiram ajustes? Nada. Esse auxílio emergencial foi totalmente descalibrado. O auxílio emergencial era para dar subsistência para pessoas vulneráveis, Olha o crescimento das vendas do varejo e da indústria. É absolutamente artificial. Errou na dose.”
Traduzindo, se é que é necessário: o dinheiro que era para o povo vulnerável não morrer de fome, acabou sendo gasto, em boa parte, para a compra de eletrodomésticos e para a reforma de casas, entre outras coisas. Erro na dose.
Zeina Latif não vê, nem no aumento do PIB um aspecto positivo dessas medidas: “É sonho de uma noite de verão. É transitório, porque é um crescimento artificial. A fatura já está chegando. Por que o câmbio está assim? Tem de tomar cuidado, Eu fui contra o tempo todo ao discurso de ‘vamos gastar e depois a gente vê’. Não existe isso, recurso público tem de ser usado com zelo. O Brasil, em relação aos emergentes, destoou de novo.”
Como se vê, a conta está chegando. Em editorial desta quarta-feira, o jornal O Estado de São Paulo diz que o ministro da Economia, Paulo Guedes, “tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá”. E completa: “Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República”.
… Parece que a derrota de Trump, o guru do bolsonarismo, afetou de modo inverso os pouco neurônios que restam no núcleo do poder – o presidente, seus filhos e alguns generais que adoram ser humilhados por um imbecil de galochas – pois, diante do perigo da segunda onda (os números da pandemia estão crescendo aqui e nos EUA), ao invés de não se cometer os erros de passado recente, estamos assistindo a uma radicalização negacionista pior ainda do que aquela que vimos no início da peste.
Só que, apesar das evidências todas, dos mais de 170 mil mortos, do sufoco que passamos, a possível reentrada forte do vírus no país, o que caracterizaria a tal da segunda onda, é recebida com o mesmo desleixo tétrico do início da pandemia. Um texto, certamente produzido pela ala mais ignorante e radical do entorno bolsonarista e que está sendo distribuído por aí, compara o uso de máscaras de proteção com o véu que as mulheres islâmicas são obrigadas a usar pelos regimes opressores muçulmanos. É de estarrecer que alguém consiga escrever um absurdo desse e, mais estarrecedor ainda, que haja pessoas que se sintam representadas por esse obscurantismo e compartilhem o texto nas redes sociais.
E, nesse mesmo caldeirão de ignorância medieval, o texto ainda faz um libelo sobre todos os males possíveis que advirão em consequência de você “ficar em casa”, do tipo “fique em casa e tirarão seu emprego de você…”
Parece que a derrota de Trump, o guru do bolsonarismo, afetou de modo inverso os pouco neurônios que restam no núcleo do poder – o presidente, seus filhos e alguns generais que adoram ser humilhados por um imbecil de galochas – pois, diante do perigo da segunda onda (os números da pandemia estão crescendo aqui e nos EUA), ao invés de não se cometer os erros de passado recente, estamos assistindo a uma radicalização negacionista pior ainda do que aquela que vimos no início da peste.
O desespero pela perda de popularidade, o fracasso retumbante nas eleições municipais e a inevitável falta de dinheiro para continuar com a demagogia desse bolsa família agigantado, parece ter reduzido a pó o que sobrava de cérebro na caixa craniana presidencial.
O governo brasileiro está totalmente à deriva, brigando inclusive com seus dois maiores parceiros comerciais. Ou seja: estamos na iminência de ter um 2021 pior que 2020, só que não por conta da pandemia da covid-19 e sim da peste bolsonarista que se instalou no Palácio do Planalto.
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Edmilson Siqueira– é jornalista
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