A transposição do São Francisco ameaçada. Por Jerson Kelman

A TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO AMEAÇADA

JERSON KELMAN

Não há chance do atual arranjo institucional funcionar. É quase certo que do programa só restarão ruínas

TRANSPOSIÇÃO RIO SAO FRANCISCO

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO VALOR ECONÔMICO, EDIÇÃO DE 16 DE NOVEMBRO DE 2020

Acompanhei a ministra Marina Silva numa reunião com o presidente Lula e diversos ministros para tratar do Projeto de Transposição do Rio São Francisco, posteriormente chamado de PISF. Estávamos em 2003 e eu era o presidente da Agência Nacional de Águas –ANA desde 2001.Durante a discussão, mencionei que não bastaria construir a obra. Seria também necessário cuidar da correta operação e manutenção (O&M) das estruturas hidráulicas.Levantei esse ponto porque sempre há muito lobby para fazer obras, mas praticamente nenhum para fazê-las funcionar. Por isso temos tantas obras inacabadas ou subutilizadas.

Antes que o Governo Federal aprovasse qualquer investimento para aumentar a segurança hídrica da região receptora, como é o caso do PISF, os beneficiários –públicos e privados –deveriam ter sido compelidos a se comprometer com um arranjo legal, institucional, comercial e financeiro para viabilizar a O&M. Seria admissível que o Governo Federal arcasse integralmente com o investimento, sem qualquer retorno, como de fato ocorreu, desde que se garantisse a sustentabilidade do empreendimento. Porém, não foi isso que aconteceu.Dezessete anos e R$ 11 bilhões depois, a CODEVASF é quem tem a responsabilidade de operar o PISF. Não há qualquer chance de que esse arranjo institucional funcione. Aliás não funcionaria qualquer que fosse o operador, se dependentedo exangue orçamento da União, como é o caso da CODEVASF.

Se tudo continuar como está, é quase certo que,em poucos anos, do PISF só restarão ruínas.Para que esse desfecho não ocorra, é recomendável atribuir a operação do PISF a alguma empresa privada capaz de conseguir suficiente receita própria para equilibrar o custo de manter em funcionamento um sistema composto por 9 estações de bombeamento que elevam a água a 191metros no eixo Norte e a 332 metros no eixo Leste. O consumo de eletricidade será expressivo, em média de quase 1 kWh por metro cúbico bombeado. A outorga do PISF concedida pela ANA em 2005 permite bombeamento contínuo de cerca de 2 bilhões de litros por dia, prioritariamente para abastecimento urbano da região receptora. É apenas 1% do que em média o rio São Francisco despeja diariamente no mar. Porém, o suficiente para atender as necessidades de 15milhões de pessoas,se não houvesse perdas de água no caminho.

Em situações excepcionais de abundância hídrica, muito mais água poderá ser bombeada (cerca de 10 bilhões de litros por dia). Não para uso imediato e sim para armazenamento temporário nos açudes da região receptora para posterior uso na irrigação. Nessas situações,o custo energético será irrisório porque quando o vertimento for iminente (segundo a outorga da ANA, estoque de água no reservatório de Sobradinho maior do que 94%da capacidade máxima), haverá suficiente água não apenas para ser desviada do curso natural, mas também para passar pelas turbinas da CHESF, em vez de pelos vertedores, gerando energia que de outra forma seria desperdiçada. Portanto, a custo mínimo.

O principal componente do custo de O&M será a energia elétrica utilizada no bombeamento contínuo dos tais 2 bilhões de litros por dia. Há pelo menos duas alternativas de equacioná-lo e, ao mesmo tempo, assegurar a governança necessária para o bom funcionamento do PISF. Ambas relacionadas ao projeto de lei relativo à privatização da ELETROBRÁS, em discussão no Congresso. A primeira alternativa é aproveitar a privatização para fazer com que a CHESF se transforme em concessionária dos usos múltiplos da água do vale do São Francisco, semelhante ao Tennessee Valley Authority -TVA, dos EUA.

A nova CHESF incorporaria o PISF a seus ativos e herdaria as atuais responsabilidades de algumas entidades da administração pública.Teria a atribuição de gerar, transmitir e comercializar energia elétrica, mitigar as enchentes, operar o PISF, suprir água bruta, inclusive para irrigação,e manter o rio em condições navegáveis.O pressuposto da proposta é que a nova concessionária teria musculatura econômica com a venda de energia elétrica e de água bruta para cuidar das atividades vinculadas ao bem comum, a água. Atuaria sob fiscalização de duas agências reguladoras: a ANA e a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica).

A segunda alternativa é licitar a concessão do PISF para uma operadora privada.A nova concessionária de serviço público teria a obrigação de induzir e organizar a demanda por água bruta na região receptora, assim como manter e operar o sistema de adução.A energia poderia ter três origens: (a) compra no mercado de energia elétrica; (b) autoprodução por meio de placas fotovoltaicas flutuantes, instaladas nos açudes sob administração da própria operadora, que também serviriam para diminuir a perda de água por evaporação; (c) pequena parcela de garantia física da CHESF – entre 2%e 4%- que a União concederia para a operadora privada por ocasião da privatização da ELETROBRÁS.

A alternativa (c) parte da hipótese pessimista de que não haja interesse por parte da iniciativa privada em receber, mesmo gratuitamente, um patrimônio de mais de R$11bilhões porque a receita resultante apenas da venda de água bruta pode não ser suficiente para compensar os custos de O&M.A hipótese pessimista pode não ser verdadeira.Porém, se for, suscita uma dúvida: faz sentido dar prosseguimento a um projeto cujo fluxo de caixa seja insuficiente não apenas para amortizar e remunerar o capital investido (certamente um custo afundado…), mas também para cobrir integralmente o custo da energia necessária para o bombeamento contínuo? A resposta é “sim”, desde que a água transposta seja paga por quem dela fizer uso.Para justificar esse posicionamento, convém lembrar que a infraestrutura hídrica construída quando vigorava o New Deal acelerou o desenvolvimento de regiões dos EUA que à época se assemelhavam ao nosso semiárido nordestino.

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Jerson Kelman – ANE BrasilJerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ. Foi dirigente da ANA e da ANEEL

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