Os caminhos para a intolerância. Por Moisés Lopes *
OS CAMINHOS PARA A INTOLERÂNCIA
MOISÉS LOPES
– Sobre “famílias desajustadas”, “homossexualismo” e “escolhas”: caminhos para a intolerância –
Antônia tinha 15 anos quando conheceu Marcos, ela estava no primeiro ano do ensino médio, ele já estava no terceiro ano. Apaixonaram-se ao primeiro olhar e começaram a namorar quase que de imediato, alguns meses depois Marcos é apresentado a família de Antônia e o namoro fica mais sério. Noivam-se com a aprovação das famílias de ambos. Com 17 anos, Antônia com um lindo vestido branco, depois de mais ou menos 30 minutos de atraso, sob a marcha nupcial e acompanhada do pai entra na Igreja para dizer o “sim” que mais esperou em toda sua vida. Chuva de arroz, noite de núpcias, bodas de papel, gravidez, filhos, bodas de aço, bodas de prata, bodas de ouro. Modelo presente nos filmes, nas novelas, nas séries, tomado como “natural” para muitos, este modelo “tradicional” ou “nuclear”, está em claro processo de diminuição na sociedade brasileira e deixou de ser majoritário segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 2005.
Em 2015, este modelo tradicional de arranjo ocupava 42,3% dos lares pesquisados, e novas tendências ganharam força, por exemplo quase um em cada cinco lares era composto por casais sem filhos (19,9%), outros 14,4% dos lares era composto por apenas um morador. Ou seja, o número de lares sem filhos em 2015 alcançava quase 35% da população brasileira. O que estas mudanças significam? Quais os fatores estão por traz destas mudanças? As famílias estão se “desestruturando”?
Nunca houve um modelo definitivo de família na sociedade ocidental, autores das mais diversas áreas vem mostrando as transformações contínuas das configurações das famílias durante a história para acompanhar alterações sociais, econômicas e culturais. Assim, este modelo que chamamos de “nuclear” e que surgiu no início do século 19, nada mais é do que uma alteração de um outro modelo anterior que é descrito por diversos pesquisadores. Mas, se as famílias estão sempre em mudança, por que muitos dizem que ela está se “desestruturando” ou mesmo já se “desestruturou”?
As batalhas pelo significado do que é uma família “normal”, do que é uma família “tradicional”, do que é uma “nova família” nada mais são do que um embate político para definição do que se entende por sociedade. Há os que defendem a manutenção de uma “certa ordem”, rejeitam qualquer tipo de mudança e lançam acusações para os modelos que fogem a esta regra. Há os que olham para a realidade, abraçam as mudanças e estão aberto a “novos modelos”. Ambos estão preocupados com as crianças, com seu lugar nas distintas configurações de família.
…Temos que analisar se uma família é “estruturada” ou “desestruturada” não por conta dos membros que a compõem ou por causa de sua configuração, mas sim quando elas cumprem com sua função que é a de formar as novas gerações para atuar na sociedade de modo responsável, com valores e princípios…
Diversos autores dedicaram suas vidas e carreiras a estudar esse tema e de modo quase unânime afirmam que não podemos confundir o que foge do estereótipo do lar perfeito mostrado nas TVs, a família nuclear, como uma família desestruturada. É preciso sair da questão biológica e atentar-se para as funções paternas e maternas que podem inclusive ser exercidas por outras pessoas, como a avó, a madrasta, o padrasto ou mesmo por apenas uma pessoa. Por outro lado, não há garantia alguma de que uma casa com pai, mãe e filhos, sejam sinônimos de sucesso, pois dentro dela podem ocorrer diversas situações de abuso ou violência. Aqui cabem algumas perguntas, será que uma família estruturada seria apenas a formada por Antônia, Marcos e seus filhos biológicos, como a citada no início deste artigo? Ou, por um pastora, seu marido pastor, seus filhos biológicos e adotados e que “não pode se separar, pois iria escandalizar o nome de Deus”?
Temos que analisar se uma família é “estruturada” ou “desestruturada” não por conta dos membros que a compõem ou por causa de sua configuração, mas sim quando elas cumprem com sua função que é a de formar as novas gerações para atuar na sociedade de modo responsável, com valores e princípios. Mas de que princípios e valores estamos falando aqui? Em primeiro lugar, está o respeito e a obediência a lei, coisa que todo cidadão ou cidadã deveria ter como valor e parâmetro mínimo para atuar em sociedade. Em segundo lugar, está a capacidade de dialogar e respeitar o diferente sem associar a diferença à desigualdades, sem discriminação e sem preconceitos. Democracia aqui adquire o sentido de igualdade de todos perante à lei, respeito às liberdades civis e aos direitos humanos e não o significado de uma “tirania da maioria” que permite que “minorias políticas” sejam oprimidas.
Neste sentido, associar “famílias desajustadas” ou “desestruturadas” ao “homossexualismo” (sic) seria estigmatizar formas distintas de configuração familiar, reforçando o preconceito, a segregação e a discriminação já largamente difundidos na sociedade. Além disso, ao utilizar a palavra “homossexualismo” trazemos para o bojo do debate uma palavra que perdeu o sentido há 30 anos quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo” (o sufixo “ismo” faz referencia a doença na medicina) da Classificação Internacional de Doenças (CID). Desde então a homossexualidade (sufixo “dade” se refere a comportamento) passou a ser considerada uma característica da personalidade do indivíduo, assim como a heterossexualidade.
Finalizando, no último século pelo menos, as diferentes ciências vem se debruçando longamente sobre o tema das sexualidades, longe de chegar a qualquer tipo de consenso final sobre a origem das sexualidades, estudos já catalogaram relações homossexuais ocorrendo entre indivíduos de cerca de 1500 espécies (de girafas a cisnes e macacos). Casais gays também são frequentes no reino animal. Associar assim a homossexualidade a doença ou patologia não seria ignorar (talvez propositalmente) a natureza? Além disso, a ciência em nenhuma pesquisa séria conseguiu provar que a homossexualidade é uma escolha, uma opção. Ninguém “opta por andar no caminho do homossexualismo” (sic).
Se fosse uma escolha, quando você escolheu ser heterossexual? Quando saiu do armário?
- – Prof. Dr. Moisés Lopes – Primeiro Secretário da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura (ABEH – 2019-2020); Docente do Departamento de Antropologia – UFMT; Coordenador do Bacharelado em Ciências Sociais – UFMT; Coordenador do Núcleo de Antropologia e Saberes Plurais – NAPlus; Pesquisador do INCT – Instituto Brasil Plural
Excelente texto. Claro, coerente, explicativo. De leitura agradável.