Fiscais digitais para o aumento de preços dos alimentos. Por Aylê-Salassiê Quintão
FISCAIS DIGITAIS PARA O AUMENTO DE PREÇOS DOS ALIMENTOS
AYLÊ-SALASSIÊ QUINTÃO
… Nada impede o aparecimento, a qualquer momento, de milícias alimentícias, tipo “fiscais do Sarney”. Em tempos digitais, não sei como eles poderiam surgir. Mas, conectadas podem tudo…
Posse do Fux na presidência do Supremo, aposentadoria do Celso Mello, aumento do Judiciário, reformas eternas no Congresso, fim da Lava Jato, governantes incompetentes e a volta de Lula. Essas encenações políticas nada tem a ver com as necessidades reais da população, nem com o súbito aumento do preço do arroz. Preocupante, já que parece desnudar uma sinistra articulação para um reajuste geral de preços na economia brasileira, embora, segundo a Cobal – Companhia Nacional de Abastecimento, os 257 milhões de toneladas de grãos produzidos na safra 2019-2020, represente um volume 4,5% maior que o da safra anterior.
Reajuste de preços dos produtos básicos da alimentação não é novidade. É só perguntar às donas de casa. Por aqui vem ocorrendo, nos subterrâneos, desde o início da pandemia, quando se ensaiou a ideia de uma pseudo escassez de alguns produtos. Esse aumento do preço do arroz parece mais um oportunismo político e empresarial conspiratório. Concomitante, vem à memória a reação popular que, por volta de 1986, aterrorizou o chamado sistema produtivo, e que ficou conhecida como os “fiscais do Sarney”, grupos de cidadãos que invadiam e saqueavam os supermercados e centros de distribuição de alimentos para protestar contra a especulação com preços dos alimentos.
… A verdade é que, à exceção dos currais de flagelados do Nordeste, na década de 30, no Brasil interessa-se pouco pela questão da fome – em se plantando dá …
Ora, alimentação é coisa séria. Na Alemanha e na Rússia, para não morrer imediatamente de fome, chegou-se a praticar do canibalismo, registrando-se disputas violentas por um pedaço de pão, um rato, um escorpião e até uma barata: qualquer ser vivo animal que se atrevesse a penetrar no espaço dos campos de prisioneiros (Mila 18), provocava um tumulto aterrorizante.
Era o Holocausto, a política do regime nazista alemão de eliminação dos judeus. Morreram de fome 6 milhões de pessoas. Stálin já havia inaugurado a estratégia em 1928, adotando uma política de morte de cidadãos por inanição, que veio a ser chamada de “holodomor”. Entre 1931 e 1933, somente na Ucrânia morreram de fome mais de 5 milhões de pessoas, sem distinção entre crianças, mulheres e idosos. Como seus efeitos se expandiram, o governo passou a desapropriar as grandes fazendas e a expropriar a produção. Mas, a palavra genocídio é associada às políticas econômicas, étnicas e culturais de controle da distribuição de alimentos para extinguir as oposições políticas.
Tudo isso é pintado para a população como um momento de escassez – legitimada em discursos covardes de mercado, que transformam os produtos de alimentação em commodities, em mercadoria. Atente-se: já tivemos a “inflação do chuchu”, a da carne, a do tomate, agora a do arroz. A cada viés desses, os produtos somem e os preços, todos, sobem, sempre acompanhados do aval, da omissão ou da gestão incompetente do Estado.
A verdade é que, à exceção dos currais de flagelados do Nordeste, na década de 30, no Brasil interessa-se pouco pela questão da fome – em se plantando dá – em que pese o mapa do Josué de Castro ou as estatísticas do Betinho, para quem a fome flagela sistematicamente 25 milhões de brasileiros. A pandemia agrava esse quadro invisível.
A incidência política sobre a questão alimentar é algo complexo. O reajuste do preço do arroz e, com ele da cesta básica (2,9%), cujo mínimo suportável é garantido pelo Governo, parece explorar o momento de fragilidade do Estado e de desmobilização da população, talvez até – quem sabe – para dar lugar a um salvador da Pátria. No cenário teatral do Governo e das instituições só se fala de política e politicagem. É nesse contexto que o drama da fome é tratado: ainda votamos…
Alimentação não é propriamente um direito constitucional – esse artifício legal pequeno burguês – mas uma necessidade da natureza humana e uma obrigação do Estado para com os cidadãos. Alimento para subsistência devia ser compulsório e gratuito para todos: isso sim. Os governos tem à obrigação de manter a população alimentada.
Não existe política de segurança alimentar no mundo, nem em tempos de guerra, nem de bonança. São um bilhão de famintos. Onde existe, não funciona adequadamente. Evita-se falar em superproduções, embora, vez por outra, se assista à queima de produtos agrícolas, de animais, o despejo de leite nos rios e nas ruas. O aumento súbito do preço dos alimentos é, portanto, uma covardia contra a população venha do mundo empresarial ou do próprio governo. E não é com apelos ingênuos ao patriotismo que virá uma solução. Na economia (liberal) de mercado não tem isso. Assusta!…
Nada impede o aparecimento, a qualquer momento, de milícias alimentícias, tipo “fiscais do Sarney”. Em tempos digitais, não sei como eles poderiam surgir. Mas, conectadas podem tudo.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília