O TSE e os “negros”. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho
O TSE E OS “NEGROS”
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
… O absurdo da estatística salta aos olhos. Todos os que não são “brancos” são “negros”. Ora, qualquer um sabe que há “peles vermelhas” e “peles amarelas” entre os brasileiros, que certamente não são “negros”. Para um brasileiro, “negros” seriam apenas 10,86%…
Recente decisão do TSE sobre a atribuição de cotas do Fundo eleitoral para candidatos negros foi recebida por uns com desinteresse, por outros, mormente na imprensa, como mais uma ação afirmativa em prol das pessoas de cor.
Entretanto, ela, nas suas premissas, é, por um lado, um ameaça à brasilidade e, por outro, é um “copismo” – pois reproduz um fruto típico do racismo norte-americano. Além de se basear num critério absurdo.
Comece-se a análise pela parte final.
Para justificar a medida, o relator da consulta, o eminente Ministro do STF e Presidente do TSE, Luiz Roberto Barroso, aluno de Harvard, salienta que, nas eleições de 2018, houve 52,4% brancos e 47,6% “negros” e aponta que desses “negros” 35,7% eram “pardos” e 10,86% “pretos. Isto seria um sinal inequívoco de um “racismo estrutural” e de uma sub-representação dos “negros” na governança brasileira, decorrente da desigualdade na distribuição pelos partidos de recursos entre “brancos” e “negros”.
O absurdo da estatística salta aos olhos. Todos os que não são “brancos” são “negros”. Ora, qualquer um sabe que há “peles vermelhas” e “peles amarelas” entre os brasileiros, que certamente não são “negros”. Para um brasileiro, “negros” seriam apenas 10,86%.
Esta visão absurda trouxe o ilustre Ministro de uma das más contribuições norte-americanas – elas existem, sim – para o mundo. Com efeito, após a extinção da escravidão, brancos racistas norte-americanos criaram o expediente da segregação: “iguais, mas separados”. Esta apenas foi fulminada na segunda metade do século passado, na famosa decisão Brown versus Board of Education, tomada pela Suprema Corte, em 1954.
… No plano das instituições, a distinção entre “brancos” e “negros” – além de proscrita pela Constituição que dá a todos os brasileiros iguais direitos políticos – é um despautério “constitucional”. A eleição é feita para que a governança seja exercida pelo povo – sem distinções – ou por meio de representantes do povo…
Para efetivar tal separação, os Estados dominados pelos racistas brancos tiveram de estabelecer um critério de distinção entre o branco e o não-branco. Adotaram a teoria da “gota de sangue”. Quem descendesse, ainda que por um trisavô, de “sangue negro” seria “negro”.[1]
O absurdo é flagrante. Imagine-se uma pessoa que tenha entre os avós um avô negro os demais brancos. Teria – segundo o raciocínio sanguíneo – 25% de “sangue negro” e 75% de “sangue branco”. Seria logicamente mais “branco” do “negro” e se se suprimisse a dicotomia estava mais corretamente entre os “brancos” do que entre os “negros”.
A tese racista norte-americana é de importação recente por parte de adoradores do Tio Sam e de alguns “espertos” que, criticando da escravidão – sem dúvida uma mancha na história humana – pedem vantagens, reparações, por parte dos “brancos”. Estes seriam devedores em razão do pecado original da escravidão. Mesmo que sejam descendentes de imigrantes pobres que nunca tiveram, nem seus ancestrais, sequer um escravo.
Para esse racismo americanista não há mestiços, mas para os brasileiros eles sempre existiram e, na verdade, sempre foram considerados do povo brasileiro. O brasileiro sabe e sente que tem ou pode ter um “pé na senzala”, como afirmou um ex-Presidente da República, falando de si próprio. A exceção existe para uns poucos que tenham uma genealogia bem definida – e quand même…
Qualquer brasileiro de bom senso sabe que a miscigenação – não é preciso ler Gilberto Freire para sabê-lo – é uma realidade já vivida no passado e acentuada nos últimos cento e cinquenta anos com a imigração de italianos, judeus, alemães, japoneses, chineses, afora o núcleo inicial de portugueses e de espanhóis.
O caráter destrutivo da tese importada ameaça a brasilidade, ou seja, o vínculo pessoal que justifica a existência do Brasil. A brasilidade é uma, vem essencialmente de uma vontade viver em comum e de agir como uma comunidade única. O Brasil não é uma “confederação” de “raças” – perdoem-me a rata, pois, sei que cientificamente não existem raças – ou melhor de “etnias”. A prova visual disto se manifesta na torcida pela “amarelinha” nos campeonatos mundiais, por brancos, pretos, mulatos, indígenas, e filhos de japonês ou chinês.
No plano das instituições, a distinção entre “brancos” e “negros” – além de proscrita pela Constituição que dá a todos os brasileiros iguais direitos políticos – é um despautério “constitucional”. A eleição é feita para que a governança seja exercida pelo povo – sem distinções – ou por meio de representantes do povo.
Cabe aqui citar Mandela. Este, no discurso que proferiu perante a Corte Suprema da África do Sul, em Pretória, em 20 de abril de 1964, salientou:
“A divisão política, baseada na cor, é inteiramente artificial e, quando ela desaparecer, também desaparecerá a dominação de um grupo de cor por outro.”
Enfim, qualquer operador do direito sabe que desde que surgiu o constitucionalismo e com ele a democracia moderna, a representação não está mais a serviço de grupos ou de figuras poderosas, não é uma procuração de pessoa ou grupo determinado, como o era na Idade Média – mas sim a serviço do interesse geral. Lembre-se a Declaração de 1789 (art. 5º), lembre-se a lição de Rousseau (Contrato Social, Livro II, cap. 3º), (esquecidos talvez porque escritas em francês, embora muitas vezes traduzidas para o português). O representante serve à “vontade geral” (que visa ao interesse comum), não à “vontade de todos” (que visa a interesses particulares).
As ações afirmativas necessárias ao Brasil não podem servir para destruir o Brasil, mas para fortalecer a brasilidade, formando democratas e dando melhores condições de acesso à instrução, cultura, saúde, condições adequadas de vida aos mais pobres – pretos, brancos, mulatos, etc. – sem levar em conta a cor da pele.
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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[1] Cf. Uma gota de sangue – História do Pensamento Racial de Demétrio Magnoli (Ed. Contexto, SP 2009),
obra em que muito aprendi.
Como aprendo e amplio meus conhecimentos lendo os ensaios/artigos deste blog. Parabéns Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho.