A presença judaica na literatura brasileira. Por Meraldo Zisman
A PRESENÇA JUDAICA NA LITERATURA BRASILEIRA
MERALDO ZISMAN
… Em O Centauro no Jardim, Scliar revela a existência de um ser mitológico universal, de identidade física ambivalente, como é natural aos centauros. Além dessa característica inconfundível, o mágico de Scliar teve de enfrentar-se com sua situação de judeu nascido numa das colônias do Barão Hirsch, de onde foi transferido, pela família, para a zona urbana…
Mais do que nunca devemos estar atentos para não cairmos na armadilha dos modismos literários que podem ser mais prejudiciais que as moléstias que eles afirmam combater. Todo pensador honesto tem o compromisso imediato manter a sua cabeça erguida diante dos ídolos prevalecentes em sua época, somente por estar na moda, caso necessário, obrigação tem de remar contra a maré.
Dois períodos políticos administrativos podem ser destacados para fins didáticos do judaísmo no Brasil. Período Colonial (1500-1822) e o Período Independente (de 1822 em diante). No primeiro período, sob o domínio português, predominou o cripto-judaísmo ainda que os judeus coabitassem o território colonizado pelos portugueses desde o princípio do estabelecimento lusitano na América. A eventual contribuição do povo mosaico (seguidores de Moisés) teve assim influencia na formação psicossocial do povo brasileiro e o que aparece obliterado, esquecido ou apagado, seja pela Inquisição perseguições das mais diversas perenemente demonstradas pela História.
No segundo período, que corresponde à época nacional e independente de Portugal, a emergência da participação dos estudos desses elementos na formação do psicossocial nacional ocorre depois da Segunda Guerra Mundial. De acordo com pesquisas, é possível que as caravelas de Pedro Álvares Cabral tenham trazido judeus a bordo, que se estabeleceram na nova terra desde o início da sua história. Maioria deles (gente da nação, marranos, cristãos novos, cripto-judeus) navegantes à sua revelia, do mesmo modo como, contra seu livre arbítrio, foram encastelados no cristianismo, uma religião estranha às suas tradições como judeus ibéricos.
Como observa Rubens Ricupero, no Prefácio a Imigrante Judeus/Escritor Brasileiro, “nenhum país das Américas teve, como o Brasil, começos tão intensamente marcados pela presença e ação do povo judeu”. A afirmação surpreenderá quem pensa que o componente judaico na vida brasileira é recente, deste século, e de pouca consequência histórica “(Ricupero, “Prefacio”, XVII)”.
O alcance histórico da presença judaica nos primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil, indicado por Ricupero, é material de pesquisa e extensos estudos em outra área da cultura brasileira. Do século passado citarei dois escritores. Moacyr Scliar. Nascido em Porto Alegre em 1937, travou conhecimento das vidas desenvolvidas nas fazendas experimentais do Barão Hirsch (Barão Moritz von Hirsch, também referido como Maurice de Hirsch (Munique, 1831 – Pressburg, Áustria-Hungria, 1896), foi um filantropo e financista judeu, através de sua beneficência financiou os antigos colonos para estabelecimento de “colônias” judias no Rio Grande do Sul. Segundo entrevistas declaradas ao longo de sua carreira, Scliar cresceu entre histórias narradas pelos velhos colonos, e muito mais tarde as amalgamou nas suas narrativas ficcionais: “Muitas das minhas histórias estão relacionadas às vidas dos primeiros judeus imigrantes no Rio Grande do Sul. Eu as ouvia desde que era menino quando minha família pegava em algumas cadeiras e se sentava na calçada, nas noites de verão”.
Embora a maior parte de sua obra literária tenha cunho metropolitano, o campo sulino é constante nos seus romances, como parte integrante dos núcleos judaicos ou como saudoso pano de fundo de um passado não muito remoto para os imigrantes acomodados nas cidades. Em O Centauro no Jardim, Scliar revela a existência de um ser mitológico universal, de identidade física ambivalente, como é natural aos centauros. Além dessa característica inconfundível, o mágico de Scliar teve de enfrentar-se com sua situação de judeu nascido numa das colônias do Barão Hirsch, de onde foi transferido, pela família, para a zona urbana. Seus conflitos de identidade apenas começam a aflorar quando ele se casa com uma “centauro” não-judia. Não se faz difícil uma leitura da personalidade do centauro judeu como uma conscientização de anomalia em comparação com os demais membros da sociedade. Nesse mesmo diapasão, ele também representaria uma busca da identidade judaica e auto definição em esferas não-judaicas.
Outras obras de Scliar revolvem assuntos relacionados aos judeus onde quer que se encontrem, incluindo-se complicadas versões e interpretações do judaísmo prático, incursões espirituais e a incessante busca de um caminho definidor. Nenhum escritor brasileiro judeu aproximou-se dessa temática com tanto vigor e perseverança, combinando temas de preocupação judaica multimilenária com estratégias literárias inovadoras. Desde A Guerra no Bom Fim, seu primeiro romance publicado, Moacyr Scliar trabalha com entrelaçamentos do super real com o real, sustentados por uma voz narrativa irônica e abrangendo situações burlescas, provocadoras de um humor leal às tradições judaicas de ridicularizar a si mesmo. O tema central da maior parte das novelas e romances de Scliar, assim como os contos, é o posicionamento do judeu frente a si mesmo, aos correligionários e aos não judeus.
Desse múltiplo centro irradiam-se os entrechos, as fabulações irônicas, trágicas e cômicas, urdiduras em paisagens locais e universais, onde se interpretam situações nacionais e transculturais. A obra de Scliar, objeto de estudos universitários e exames críticos em todos os países em que seus livros foram traduzidos, podem ser vista como uma recomposição do cosmo judaico no Brasil e, talvez, em qualquer parte onde o judeu se veja, se sinta ou esteja no exílio. Esses mesmos elementos, o estar, ver-se e sentir-se exilado, vêm a constituir o tópico principal do romance No Exílio, de Elisa Lispector. Combinando memória e ficção, a autora recorda o transplante de uma família de fugitivos judeus da Rússia antissemita para o Brasil. Autobiográfico em grande parte, o romance revela os percalços da família Lispector. Clarice Lispector, a escritora nacional criada em Pernambuco, mais precisamente no Recife, quando indagada sobre sua origem diz, segundo Vilma Arêa, professora de Literatura Brasileira da Universidade de Campinas — “Nasci na Rússia, mas não é russa, é judia, sendo na verdade brasileira”.
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Prezado Meraldo,
Salvo erro ou engano, o prenome da escritora Lispector é Clarice, como você mesmo registra no último parágrafo do texto acima. Por que, então, se refere a Elisa. Foi um “lapsus linguae” ou se trata de outra pessoa, aparentada da Clarice ?
Abraço,
Clarice teve uma irmã…