A pandemia e a revolução urbana. Por Claudia Aragão Soares
A PANDEMIA E A REVOLUÇÃO URBANA
CLAUDIA ARAGÃO SOARES
O mundo está vivendo uma revolução irreversível. A pandemia pressionou e as sociedades passaram a aplicar subitamente, e em larga escala, os recursos da tecnologia digital que vinham sendo utilizados apenas por uma parcela da população. A necessidade de se manter o mercado em atividade alterou rapidamente muitos paradigmas nas relações com o trabalho e com a Urbe…
Ainda não estamos na pós-pandemia. Estamos nela e não sabemos por quanto tempo mais. Esperemos que não muito. O que isso tem a ver com o urbanismo ou a cidade? Tem tudo a ver. A cidade é o resultado dos modelos de infraestrutura que as condicionam às demandas sociais e econômicas. Há tempos, as infraestruturas demandadas eram sinônimo de estradas, saneamento, energia, entre outros insumos. Agora o fator condicionante tende a ser, cada vez mais, a infraestrutura digital. A necessidade do isolamento social forçou uma camada da população a mudar os hábitos do cotidiano. De um dia para outro passamos a realizar as nossas atividades em casa e completamente dependentes das plataformas digitais.
Tais plataformas, inclusive já vinham mudando hábitos, como o Airbnb que surgiu na crise de 2008 e a ameaçou a comunidade hoteleira, os Delivery que ameaçam constantemente os restaurantes tradicionais, a Netflix que ameaça os cinemas (e, de alguma forma até as academias de ginástica). Ou seja, o que se vê é a estrutura digital ameaçando a estrutura física. Mas não parece admissível que um deva ou vá suprimir o outro. Precisamos de uma conectividade entre o físico e o digital. No século XIX os principais movimentos do planejamento urbano surgiram como resposta às necessidades de caráter higienista ou sanitarista.
Hoje, mais que nunca, precisamos de um planejamento urbano eficaz para criar uma boa infraestrutura que, para além de físico tenha em conta a importância do papel desempenhado pela infraestrutura digital, o que poderá representar, por consequência, algo determinante na democratização do espaço urbano e da sociedade. Na verdade, apenas as guerras, terremotos e pandemias são capazes de criar ou provocar momentos de rupturas transformadoras das cidades. Demandam respostas velozes para súbitas novas realidades.
Este é, com certeza, um bom momento para refletir, colher dados gerados por esta pandemia e, desde logo, absorver reflexões de novos hábitos na vida nas cidades. Até porque alguns deles vieram para ficar. Para isso temos que analisar o que mudou apenas porque realmente era uma emergência, o que veio para ficar apenas circunstancialmente, e o que efetivamente serão consideradas mudanças.
A infraestrutura digital chegou para mudar hábitos e rotinas num tempo mais veloz que as evoluções da infraestrutura física. Sugere a necessidade de ser implementada nas cidades (e demais territórios), principalmente onde exista a prevalência econômica da equação trabalho e renda. A “oportunidade” de se reduzir significativamente as necessidades de deslocamentos casa-trabalho tende a ser um foco do novo modelo de ocupação do território. Indaga-se nesse momento quais serão as novas tendências da ocupação do território, se vai haver concentração ou a dispersão, e o que as cidades querem para si próprias no “novo normal”.
Alguma coisa já mudou. Percebemos algumas movimentações no campo da estrutura física que se alterou pela chegada da estrutura digital. Quando grandes empresas foram forçadas a usar plataformas digitais para continuar seu trabalho remoto e viram que funcionou muito bem e que, mesmo com toda a dificuldade do stress da pandemia e com a pouca estrutura doméstica, com filhos, netos, etc, tiveram até aumentos de produtividade e constataram que as relações de trabalho funcionaram perfeitamente por estes caminhos, as corporações começaram a questionar os custos relacionados à manutenção do espaço físico.
Em São Paulo, grandes empresas entregaram prédios inteiros e isso provavelmente acontecerá no mundo inteiro. É evidente que os espaços físicos não irão sumir. Porém, claramente tendem a diminuir. E o que acontecerá com esses tantos edifícios que poderão ver suas ocupações significativamente reduzidas? Serão readaptados? Que uso terão?
Só no Recife, um recente estudo identificou cerca de 450 edifícios empresariais. A verdade é que se no começo do isolamento a adaptação à rotina de home office foi difícil, passados três a quatro meses muita gente refletiu e provavelmente contabilizou inúmeros benefícios por trabalhar em casa ou bem próximo a ela.
Falamos aqui de um trabalho que é tipicamente de escritório, porque sabemos que uma grande parcela da população não teve condições de fazer sequer a quarentena e nem home office. E essas pessoas precisam estar incluídas na transformação da cidade e terem acesso a infraestrutura física e digital, senão nunca teremos uma cidade inteligente. O fato é que a dinâmica casa-trabalho poderá ter mudado de forma radical.
A pessoa pode não querer trabalhar exatamente na sua casa, mas desejar morar perto do espaço onde trabalha. Ainda que esse novo espaço seja uma extensão ou espécie de filial da matriz onde tradicionalmente trabalharia (que pode deixar de existir). Novos horizontes se abrirão no mundo laboral e o trabalho presencial poderá ser opcional mais cedo do que se imaginava.
O impacto na mobilidade urbana pode ser imediato: menos desperdício de tempo com deslocamentos viários ou aéreos entre cidades e regiões. As reuniões por teleconferências mostraram-se tão eficazes quanto as suntuosas mesas de conselhos administrativos. As agendas presenciais seriam dispensáveis a partir dessa nova realidade pós pandemia. Podemos inclusive supor que a peste do século tenha vindo para reforçar e agilizar as ideias de ordenamento dos planos diretores das cidades que tentam fazer com que a ocupação do centro tradicional seja mais plural e desejam colocar mais habitação onde há mais serviços e onde já se sabe que ao se criar novas centralidades haverá menos mobilidade.
Adivinha-se que os movimentos pendulares casa-trabalho tendam a ser cada dia menos relevantes no dia a dia das cidades (particularmente nas de maior dimensão). Como se sabe, um plano diretor indica diretrizes e estratégias que a cidade precisa para crescer em harmonia com a concepção dos planejadores, criando normas e induzindo o mercado.
Mas, e se os dados científicos ou os órgãos de saúde influenciarem a criação de novas normas técnicas de construção nesse novo normal? E se as mudanças nas normas de ABNT, NBR e ISOS forem redimensionadas, como por exemplo para o uso de elevadores? Quantas pessoas devem trabalhar num determinado espaço? Como se podem criar distintos ciclos de trabalho diminuindo picos de afluência de transportes públicos? Que impacto teremos na economia, no gerenciamento do espaço, e na produção do mercado imobiliário no futuro?
Nesta relação de home office o espaço público exercerá um papel de socialização muito importante e terá que ser bem tratado. No entanto, será que estamos dispostos a mudar de atitude e redimensionar os espaços? No jornal El País eles enumeraram as dez tendências para o mundo pós pandemia: Revisão de crenças e valores; Menos é mais; reconfiguração dos espaços do comércio; novos modelos de negócios de alimentação; experiências culturais imersivas; trabalho remoto; morar perto do trabalho; shopstreaming; busca por novos conhecimentos e educação à distância.
O mundo está vivendo uma revolução irreversível. A pandemia pressionou e as sociedades passaram a aplicar subitamente, e em larga escala, os recursos da tecnologia digital que vinham sendo utilizados apenas por uma parcela da população. A necessidade de se manter o mercado em atividade alterou rapidamente muitos paradigmas nas relações com o trabalho e com a Urbe. Ingressamos num novo ciclo como consequência da ameaça de um vírus mortal. Somos, nesse momento, seres em plena evolução de costumes. Torcemos que para melhor.
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Claudia Aragão Soares – Especialista em questões urbanas. Arquiteta pela UFPE, com passagens pela Europa. Integra a equipe do cientista político, PhD em Ciência Política por universidade de New York e vereador do Recife, André Régis. O tema foi discutido em recente seminário da equipe.
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