Noel Rosa em Belo Horizonte. Blog do Mário Marinho
NOEL ROSA EM BELO HORIZONTE
BLOG DO MÁRIO MARINHO
Na manhã desse domingo, estava assistindo ao delicioso Sr. Brasil, na TV Cultura, quando o excelente Rolando Boldrin contou uma história em que Noel Rosa era um dos personagens.
Lembrei-me então de uma passagem com Noel Rosa.
Não pessoalmente com ele.
Noel Rosa nasceu em 1910, na Vila Isabel, Rio de Janeiro, e morreu em 1937, com apenas 26 anos de idade.
Por ter nascido de um parto a fórceps, Noel Rosa sofreu fratura na mandíbula que o deixou deformado.
O mais grave, porém, não foi a deformação no queixo, mas a dificuldade do grande sambista em se alimentar. Quem viu, dizia que não era um espetáculo bonito vê-lo se alimentando.
Sabendo disso, Noel evitava se alimentar na companhia de amigos.
Preferia a bebida.
A falta de alimentação, o excesso de bebida e de cigarro levaram-no à tuberculose, doença que matava muito naquela época.
Noel quis estudar Medicina, mas a vida glamourosa da boemia não permitiu.
Gênio, aprendeu bandolim de ouvido e logo passou ao violão. Seu primeiro grande sucesso foi o samba “Com que roupa”.
Dizem que a inspiração para o samba veio quando, numa determinada noite, amigos foram à sua casa convidá-lo para sair. A mãe, que se preocupava muito com a frágil saúde do filho, escondeu as roupas dele.
E quando Noel, feliz com o convite, foi se vestir para sair, constatou que não havia roupas.
Então, perguntou aos amigos:
– Com que roupa?
Gênio que era, viu ali inspiração para um bom samba.
Em 1935, com a saúde bastante frágil, Noel Rosa se mudou para Belo Horizonte.
O ar puro e fresco da cidade era um santo remédio para a doença.
Mas, na capital mineira, Noel não quis se internar no Sanatório que ficava no afastado bairro do Barreiro. Preferiu ficar na casa dos tios Mario e Carmem, no bairro Floresta. Bairro bem próximo ao centro, o que facilitava as fugas do sambista para a noite daquela pacata cidade que, na época, andava por volta dos 120 mil habitantes (hoje está em torno de 2.500.000 habitantes).
Noel chegou a ficar internado numa unidade de tratamento de tuberculose na Santa Casa, mas, também de lá dava suas escapadas para a vida noturna.
No dia seguinte, o médico encontrava um pequeno relatório, informando a hora da saída e a hora da chegada. Era o próprio Noel que redigia o relatório, em bem-humorados versos.
Pois bem, em 1967 eu era repórter de polícia da edição mineira da Última Hora.
O redator chefe era o competente e criativo jornalista Demóstenes Romano que, aliás, havia me levado para a UH.
Comemorava-se, portanto, os 30 anos da morte do Noel.
Embora o jornal Última Hora não dedicasse muito espaço para esse tipo de matéria, Romano, com sua verve jornalística apurada, viu ali a possibilidade de uma boa matéria e me pautou para fazer uma reportagem sobre os dias (quase cinco meses) que o criativo sambista viveu em BH.
Encontrei companheiros de noitada dele.
Um deles, um boêmio, quase o boêmio oficial de Belo Horizonte, Rômulo Paes, também jornalista, compositor, homem de rádio, que conheceu Noel na época.
Contou-me algumas histórias vividas por ele, Noel e o médico Paulo de Sousa Lima, tisiologista, que tratava com cuidado da saúde de Noel, mas, também com compreensão, já que ele era também um amante do samba.
Pois contou-me Rômulo Paes que, certa noite, já madrugada para época (na verdade, entre 23 e 24 horas), os três atravessavam o charmoso viaduto Santa Tereza que liga a rua da Bahia aos bairros de Santa Tereza e Floresta.
A rua da Bahia era pródiga em bares que funcionavam até mais tarde.
Eis que o trio atravessa o silencioso e bonito viaduto e, claro, cantando.
De repente, os três são abordados por um guarda noturno que, no cumprimento do dever, exige silêncio, dado ao adiantado da hora.
Mas, calar Noel Rosa?
– E ainda aquela hora? Indignou-se Rômulo Paes. Tentamos mostrar ao guarda que não havia ninguém nem casas por perto. Mas, ele inflexível nos apontava com a lei do silêncio e a possibilidade de irmos prestar contas na delegacia.
Foi quando Rômulo sacou argumentação definitiva:
– Seu guarda, o senhor vai calar o Noel Rosa?
– Quem?
– Noel Rosa.
– O sambista?, perguntou o guarda incrédulo, extasiado, mas, com a desconfiança característica do mineiro.
– Sim, esse é o Noel?
– O senhor é mesmo o Noel Rosa?
Diante da confirmação, abriu sorriso e puxou do bolso interno do pesado sobretudo uma flauta e soprou os primeiros acordes de “Conversa de botequim”.
E lá se foi o quarteto, viaduto Santa Tereza e noite afora.
Ouça “Com que Roupa”, composição de 1935, na voz do próprio Noel.
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Mário Marinho – É jornalista. É mineiro. Especializado em jornalismo esportivo, foi durante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, além de participação em inúmeros livros e revistas do setor esportivo.
(DUAS VEZES POR SEMANA E SEMPRE QUE TIVER MAIS
NOVIDADE OU COISA BOA DE COMENTAR)
Com o molho que Marinho sempre soube dar a um texto, eis uma de suas muitas histórias divertidas, que nos tocam a alma. 👏👏👏👏👏
Marinho,
muito boa a sua matéria sobre o Noel Rosa em BH, onde morei nos anos de 1955 e 1957, e morria de medo de pegar tuberculose. Um cara tossindo perto de mim, eu saía de perto. No cinema, então (eu ia sempre ao Cine Metrópole, que passava os filmes da Metro e, aos domingos, tinha, pela manmhã, sessão com desenhos do Tom e Jerry. Mas, em seu texto, vc menciona o Rômulo Paes, que conhecia de nome e pelo famoso verso atribuído
a ele, que definiria bem a mesmice de BH nos anos 40 e 50. Ei-lo: “A vida é esta:/ descer Bahia/ e subir Floresta.”
Abração,
Melchíades
Melchíades,
obrigado pela leitura.
A frase do Rômulo Paes é invertida:
“A minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta”
Abração,
Mario Marinho
Que texto delicioso e emocionante… o final é pura doçura.
Eu me deliciei, tanto pelo tema quanto pela sua forma singela e delicada de escrever.
Esplêndida essa matéria sobre o Noel Rosa, por vários motivos.
Bem escrita, plena de detalhes saborosos etc.
Mas, pra mim, com uma importância fundamental: não sabia que o Noel Rosa tinha passado esse quase meio ano em BH.
Aliás, a cidade, até os anos 50 permanecia com a fama de ter bom clima para ajudar na cura da tuberculose.
Um primo, pelo começos daquela década, em Belém do Pará, foi acometido pela tísica. Imediatamente o transferiram para a Capital mineira, onde morava um médico amigo da mãe do enfermo, minha tia.
O resultado foi que a cura realmente ocorreu, e o curado lá permanece até hoje, saudável, ágil, criativo. No vigor dos seus bons 87 anos.
Abração,
Antônio Contente
Caríssimo, Contente.
É sempre muito bom receber esses seus comentários tão elogiosos, tão generosos.
Que bom saber que o seu primo tenha se curado.
Muito embora Belo Horizonte tenha recebido muitos doentes vitimas da tuberculose, ninguém nunca se acostumou com a doença.
No meu tempo de menino, uns 20 anos depois de Noel Rosa, não se falava o nome da doença.
Às vezes, era substituída pela “Tísica”, como Você fez no seu texto.
A uma pessoa doente, todos se referiam a ele como: “ele está tísico” ou “pegou a tísica”.
Eram tempos em que a cidade não só tinha belos horizontes, como ar puro e curador.
Abração,
Marinho.