Os novos bárbaros. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho
OS NOVOS BÁRBAROS
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
… Os novos bárbaros, entretanto, já estão integrados nessa civilização e cultura, apenas querem refazer a história, como se isso fosse possível. Estão movidos por ideais justos, como combate ao racismo e a escravidão, mas para tanto não propõem medidas construtivas. Pretendem simplesmente apagar da história que esses males tenham existido. Mais. Querem punir aqueles que, no passado, conviveram com essas abominações, e não tiveram olhos abertos para denunciá-las, ou simplesmente as viram como normais, como todos os outros contemporâneos seus…
Uma nova invasão de bárbaros começou. Tomou os Estados Unidos, espalhou-se pela Europa e agora começa a ser arremedada ridiculamente no Brasil. Na história, nunca se viu uma “pandemia” de difusão tão rápida, mas a razão é clara e óbvia: os vândalos, godos, suevos e companhia não gozavam dos instrumentos da tecnologia atual.
Há várias diferenças, porém, e importantes, que separam os bárbaros da antiguidade os bárbaros da contemporaneidade. Os do passado visavam espaço para viver melhor e eram abertos para o progresso. De fato, incorporaram a cultura dos invadidos, como gregos e romanos, e com sangue novo, levaram a adiante a obra civilizatória e cultural que chega até a contemporaneidade.
Os novos bárbaros, entretanto, já estão integrados nessa civilização e cultura, apenas querem refazer a história, como se isso fosse possível. Estão movidos por ideais justos, como combate ao racismo e a escravidão, mas para tanto não propõem medidas construtivas. Pretendem simplesmente apagar da história que esses males tenham existido. Mais. Querem punir aqueles que, no passado, conviveram com essas abominações, e não tiveram olhos abertos para denunciá-las, ou simplesmente as viram como normais, como todos os outros contemporâneos seus. Assim, os novos bárbaros condenam e renegam os seus próprios antepassados, porque não houve na terra civilização sem escravidão e racismo até menos de dois séculos atrás.
O absurdo é flagrante. O passado não se refaz pela mera e irretorquível razão de que já se fez, não pode ser mudado porque já foi feito. Condená-lo ou aplaudi-lo de nada serve para alterá-lo. Pode, sim, para aplacar consciências de quem sofre pelos pecados alheios, cujo contexto não compreendem.
Entretanto, os novos bárbaros não veem que, na sua faina pretensamente modernosa, atacam a cultura e a civilização. É o que ocorre, por exemplo, quando se dispõem a destruir monumentos históricos, e obras de arte, suprimir filmes, logo queimar livros, etc., para vingar a escravidão de negros e índios. A vingança nada muda do passado, não pune os que escravizaram, ou compraram de seus escravizadores aqueles que trouxeram para o trabalho, mas sim fere os inocentes e prejudica a todos, inclusive aos próprios vingadores que envenenam a alma. Sem falar no óbvio que não atenuam os sofrimentos de quem os suportou.
Com efeito, ao fazê-lo, estão reduzindo o patrimônio comum a toda a contemporaneidade e ao futuro. A comunidade, de hoje e de amanhã, perde na arte, na literatura, obras de valor incompensável. Com isto, fecham para si e para todos, mesmo os futuros, o acesso a valores nobres que melhoram o próprio ser humano. E assim todos perdem em saber, em cultura, em civilização.
Os novos bárbaros se não forem detidos poderão instaurar uma nova era de trevas. Começam como aqueles que, em nome de uma fé e não de uma vingança, arrasaram templos e destruíram estátuas de falsos deuses. Mas não pararam aí, logo queimaram pergaminhos e assim sufocaram ideias e conhecimentos, filosóficos, literários e científicos. Fizeram assim o mundo regredir em cultura e saber, e, consequentemente, mudaram-no para pior. Que se ganhou com a queima de obras preciosas nas bibliotecas de Roma, de Alexandria?
Que atraso trouxe isto! E que mérito se pode dar a isto? Até os atuais crentes deles se envergonham.
A irracionalidade dos novos bárbaros é em parte fruto da ignorância, em parte da “cegueira” mental – às vezes, de ambas que se potencializam. E incidem não raro na mais crassa das injustiças.
… É certamente baldado argumentar com bárbaros. A racionalidade lhes está fora de alcance. Não têm, como os indígenas, sequer espelhos para se verem. Eles são para si próprios os justos, os redentores da humanidade. Como o eram os nazistas para nazistas, os fascistas para fascistas, os comunistas para comunistas. E todos estes, como os novos bárbaros, agiram do mesmo modo, contra a cultura e a civilização…
Muitos dos que, homenageados em monumentos, são hoje fruto do novo vandalismo lutaram contra a escravização dos indígenas e deram à comunidade a contribuição de seu talento. Não picharam em Portugal a estátua do padre Antônio Vieira? O seu crime qual foi? Se não pode ser o racismo – salvo para ignorantes – só pode ser o de pregar de boa fé uma religião. Portanto, a pichação foi, ademais, um ato de perseguição religiosa!
Outros deram uma contribuição incomensurável para a humanidade?
Colombo que trouxe para o mundo um novo mundo, foi agora “decapitado” nos Estados Unidos? O achamento de um novo espaço, quase desabitado, fértil e rico, não foi uma contribuição para a humanidade? Não tinha ele escravos, mas quem sabe teria sido melhor para os índios que vivessem alegremente na idade da pedra. Os indignados que decapitaram o genovês certamente não gostariam de viver na idade da pedra. O Presidente Wilson que um século atrás lutou contra a guerra pela paz, foi punido por uma Universidade – que deveria primar pela inteligência e compreender a cultura – por ter sido acusado de tolerante com o racismo.
No Brasil, já ameaçam heróis da liberdade, como Tiradentes. Tinha este escravos? Mas, ao se sacrificar pela liberdade de uma nação, tal “crime” – que na percepção dele não o era – não teria sido redimido? Mas ameaçam a sua comemoração de seus heroísmo?
Ou os que construíram o país, como os bandeirantes? Se nalgum momento vivendo os padrões da época contrariaram a visão retrospectiva dos novos bárbaros, que usufruem de sua obra, é justo por isso privá-los do reconhecimento? Não querem destruir o monumento que espelha a sua obra?
É certamente baldado argumentar com bárbaros. A racionalidade lhes está fora de alcance. Não têm, como os indígenas, sequer espelhos para se verem. Eles são para si próprios os justos, os redentores da humanidade. Como o eram os nazistas para nazistas, os fascistas para fascistas, os comunistas para comunistas. E todos estes, como os novos bárbaros, agiram do mesmo modo, contra a cultura e a civilização. Logo, como eles, chegarão aos livros, reescrevendo a história e com isso perdendo-se a mestra que é a experiência.
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
SP 28/06/2020