Algumas forças parecem satisfeitas, como se não houvesse uma política real inspirada pela morte.
Um momento de trégua pode ser interessante quando as forças se reorganizam para o inevitável combate que virá adiante. Mas pode ser fatal, quando elas se distendem e acham que o processo chegou ao fim e que o presidente Bolsonaro desistiu de seu projeto autoritário.
A oposição foi às ruas muito rapidamente depois do 7 de Setembro. O ato bolsonarista foi organizado durante dois meses, com trabalho intenso e um empenho do governo federal.
Além da rapidez, as forças de oposição que foram às ruas cometeram o erro de excluir outras, não souberam contornar as dificuldades que surgem numa frente ampla. É ingenuidade supor que o PT e seus aliados iriam às ruas sabendo que Lula seria criticado. A expressão nem Lula nem Bolsonaro é uma afirmação eleitoral, voltada para 2022. Ignora as circunstâncias do momento.
Além do mais, uma dupla negação não basta para mobilizar. Entre Lula e Bolsonaro existe uma miríade de alternativas. Qual delas estava em jogo, o que propõe para o Brasil?
Tanto o recuo de Bolsonaro como a escassez de gente nas ruas deu aos deputados o argumento de que precisam para continuar sentados em cima dos pedidos de impeachment. O governo, para eles, torna-se uma vítima atraente da qual ainda se pode arrancar muito, em verbas e cargos.
Da mesma forma, alguns chamados pacificadores estão em busca de uma parcela de poder, oferecendo a Bolsonaro algo que não deveriam poder dispor, como, por exemplo, a impunidade se seu filho Flávio Bolsonaro.
O que ficou claro é que Bolsonaro recuou de sua disposição de derrotar o Supremo. Houve um plano claro de invasão do prédio do STF, utilizando uma vanguarda de manifestantes e caminhões. Da mesma forma, houve uma articulação entre uma numerosa presença nas ruas e o bloqueio das estradas pelos caminhoneiros.
… Ao invés de aproveitarmos o relativo fracasso da tentativa de golpe de Bolsonaro e seu recuo tático, algumas forças parecem satisfeitas, como o se o único problema de Bolsonaro fossem suas barbaridades ditas num cercadinho e não houvesse uma política real inspirada pela morte…
Este é o roteiro básico que ele poderá voltar a usar, sobretudo quando for derrotado nas eleições de 2022. Pelo que observei no Chile, manifestação de caminhoneiros é mais eficaz quando se coloca contra um governo. Da mesma maneira, no contexto de uma eleição recusada pelos perdedores, é mais difícil de conter a violência de milícias armadas.
Grandes empresários foram filmados rindo em torno de uma mesa diante de imitações de Bolsonaro. Parecem relaxados e satisfeitos, pois acham que continuarão ganhando dinheiro como sempre.
Ocorre que o processo de destruição da natureza continua. Cerca de 17 milhões de animais morreram queimados no Pantanal. As emissões na Amazônia já superam o carbono armazenado pela floresta. O processo de perdas humanas na pandemia chegou a um ponto muito alto e, agora, parece declinar. Mas o assalto aos recursos naturais não cessa e caminhamos para uma situação irreversível. Nem a morte de quase 600 mil pessoas nem uma política patológica de destruição ambiental podem ser consideradas motivo de riso. Sem contar com o perigo futuro de prisões, tortura e mortes que decorrem de um golpe de Estado da extrema-direita.
Ao invés de aproveitarmos o relativo fracasso da tentativa de golpe de Bolsonaro e seu recuo tático, algumas forças parecem satisfeitas, como o se o único problema de Bolsonaro fossem suas barbaridades ditas num cercadinho e não houvesse uma política real inspirada pela morte.
A oposição precisa amadurecer. Se insistir na escolha de um candidato a 2022, e não na defesa da democracia, estará fortalecendo o golpe. Há tempo para o processo eleitoral. Mas antes dele é preciso constituir uma ampla e efetiva aliança para pressionar Bolsonaro, buscando ou o impeachment ou um desgaste que o leve a 2022 tão enfraquecido que não terão eco suas denúncias de que perdeu porque as urnas eletrônicas são fraudadas. A partir de uma certa margem, a denúncia tem menos credibilidade.
O melhor aproveitamento da pausa é o exame do fracasso da tentativa de golpe. Seus contornos foram definidos. Mas onde esbarrou? Como fortalecer ainda mais as linhas democráticas que o contiveram?
Temer ofereceu a Bolsonaro uma saída ostensiva. Não se sabe que tipo de acordo foi tramado nos bastidores.
Posso estar enganado, mas minha experiência me indica que Bolsonaro não se arrependeu nem fez suas acusações no calor do momento. Felizmente, para nós, ele é pobre em planejamento. Quando subiu ao palanque e disse que convocaria um nebuloso Conselho da República, estava apenas dando uma satisfação aos manifestantes. Mostraria a foto da multidão e ela teria efeitos milagrosos. Uma espécie de cloroquina política.
Ainda não foi desta vez. Mas uma das piores atitudes diante de um golpe é ignorar sua aproximação e não se preparar para ele. Mesmo os que acreditam que não tem viabilidade histórica e seria derrotado com relativa rapidez precisam compreender que o momento de um golpe de Estado é muito nebuloso, tudo pode acontecer, não há controle. Todos os atores importantes deveriam ter seu plano de preservação e saber como se comunicar entre si.
Não creio que seria eficaz discutir isso em espaço aberto. Mas o aviso fica aí. Vivi alguns momentos como este, no Chile, no Brasil, e vi como as milícias se multiplicavam na fragmentação da ex-Iugoslávia. É algo sério. Empresários risonhos não têm ideia do quanto dói.
Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas. Já recomeçou a gravar os seus programas especiais para a GloboNews.