FAKE NEWS -inundações

A Democracia, o Direito e as fake news. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

A DEMOCRACIA, O DIREITO E AS FAKE NEWS

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO

 

Um dos grandes temas do momento, senão o grande tema do momento, é a questão das fake News em face da democracia. Ela é objeto de CPIs, de inquéritos judiciais e poderá ser fundamento de graves decisões que tocam o âmago da democracia. Ao menos da democracia tal como a reconhecemos: a democracia como expressão dos direitos fundamentais do ser humano – o que importa em liberdade e igualdade – e com a implicação de que o poder necessário à sociedade deve ser atribuído em eleições livres.

O tema, porém, é complexo – tão complexo que nem deveria ser abordado num simples artigo – mas é tão importante que devem todos os cidadãos ter presente essa complexidade.

Que são fake News?

A expressão fake News, traduzida ao pé da letra do inglês, significa “notícias falsas”. Entretanto, quando se investigam fake News nas câmaras e nos tribunais, as notícias falsas são apenas um aspecto da questão. Na verdade, o que está, por um lado, em causa é o impacto de um novo meio – um meio cibernético – de transmissão de informações o emprego de robôs, programado por algoritmos, atingindo a milhões em instantes. Tal meio pode servir para difundir fake News, como evidentemente notícias verdadeiras. É neutro. E, num quadro político de crise, a imputação de uso “desleal” desse meio justifica impugnação de resultados e a acusação de servirem para indevidas e criminosas ações contra os adversários, inclusive altas autoridades.

A utilização desse novo meio deve, certamente, ser regulamentada – como, isto se discute pelo mundo afora – pois enseja abusos, como os que comete o “poder econômico”, embora seu custo seja reduzido em face do que custam campanhas pela televisão, por exemplo (gratuitas, mas com encenações caríssimas, obra de “marqueteiros” regiamente pagos). Com o tempo todas as campanhas políticas dele usarão se já não usaram.

Embora não haja uma mensuração do seu efeito – do seu poder de convencimento – eles irão completar um arsenal tecnológico que teve novidades como a imprensa, com os jornais, o cinema, o rádio e a televisão. (Ainda há algumas pessoas vivas que conheceram as campanhas políticas sem televisão).

As notícias falsas.

O aspecto evidentemente mais importante é o substantivo. Este, sim, é delicado. Aparentemente se resume à difusão de notícias falsas – isto é, em termos crus – de mentiras. O que, indo mais a fundo, importa na questão filosófica da verdade e jurídica, da liberdade de crença e sua projeção a liberdade de expressão do pensamento.

Sim. O que falso é o que é contrário à verdade. Mas que é a verdade? Já se fez esta pergunta num julgamento célebre.

Claro está que filosoficamente se pode teoricamente determinar o que seja a verdade, mas já se torna penoso determinar o que é verdadeiro ou falso em casos concretos – vejam-se os processos judiciais que se baseiam em provas mais tarde comprovadas falsas. E é absolutamente subjetivo quanto a doutrinas e concepções da vida e do mundo.

Por isso, o tradicionalmente direito é prudente. Ele pune a inverdade apenas quando ela decorre da intenção de prejudicar a outrem. Sanciona há séculos a difamação, a calúnia e não proíbe a mentira salvo em casos com o do falso testemunhos em juízo. Ele não pune mentiras inocentes, como papai foi para o céu ou o Papai Noel lhe trará o presente. Mas pune a difamação e a calúnia. As fake News em grande parte se enquadram neste caso e pela mesma razão devem ser punidas. Se o meio o dificulta, a solução não está em proibir o meio, mas regulá-lo para que não seja mal usado.

O imperativo de dizer a verdade é um preceito ético e religioso, mas o direito exige apenas o mínimo ético, ou seja, a observância de um mínimo de regras que permitam a convivência social, não a perfeição moral a que apenas os santos alcançam.

O “discurso do ódio” e as ameaças.

Mas virá o argumento de que as fake News potencializam o ódio e por isto mais são graves de que as meras mentiras. Realmente o discurso do ódio já é mais grave por isso é que ele punível se incitar ao crime ou fizer apologia deste. É o que está respectivamente nos arts. 286 e 287 do Código Penal brasileiro. Aplique-se a tal discurso o já previsto e não o que ainda está para ser inventado.

Quanto a ameaças, estas são puníveis, sim, mas quando extravasam o pensamento e se concretizam em atos de execução ou na preparação desta. É o caso, então da tentativa que também pune o Código Penal. As meras ameaças, sejam verbais, sejam por escrito, quando não passarem deste ponto, ou seja, quando não passam de cogitações, são irrelevantes para o direito. A razão disto é simples: descabe punir meros “pensamentos” (e imagine-se quantas penitenciárias seriam necessárias para acomodar todos os seres humanos que tivessem pensamentos “criminosos”).

Isto, na sabedoria romana, se exprimia num conhecido brocardo: “Cogitatione nemo poena patitur” – “ninguém deve ser punido por meras cogitações”. É este um dos princípios básicos do direito penal, ao lado de outro – essencial, mas frequentemente esquecido – “Nullum crimen, nulla poena, sine lege” – “Não há crime, nem pena, sem que a lei o estabeleça”. Sem lei obviamente prévia, pois sem isto inexistiria segurança para ninguém.

As notícias falsas e a democracia.

Por outro lado, no campo da vida política – o da democracia – a questão tem contornos mais difíceis de traçar. Colocando-se de modo cru, o que é verdade para um pode ser inverdade para outro. É o que depende da crença do indivíduo, não só em matéria religiosa, mas cultural, das convicções doutrinárias que o convenceram.

Isto se torna patente, por exemplo, na oposição entre a doutrina política democrática e a doutrina política marxista. Aquela – simplificando – atribui o poder ao livremente eleito; esta, ao partido que encarna a verdade e pode exercer sua ditadura (para o bem de todos…). A democracia deve defender-se contra seus inimigos? Hoje, a maioria diria sim, mas será que não há uma seletividade quanto aos inimigos? O comunismo é tolerado e ainda pregado na democracia, o nazismo ou o fascismo, não, conquanto ambos sejam antidemocráticos. Com efeito, partilham o monopólio do poder em favor de um chefe e seu partilham e o exercício desse poder de modo mais do que ditatorial, totalitário. Lembre-se de Hitler, contudo sem esquecer de Stálin.

Na verdade, se novas concepções políticas não puderem ser discutidas, a democracia estará traindo sua história pois foi pregada contra as monarquias estabelecidas. (O que mostra inanidade da resistência do antigo contra o moderno). É verdade que, sendo a democracia também um processo de livre escolha pelo povo, ela deve defender-se contra a imposição contra a vontade do povo de outra forma de governo.

Ademais, nos debates políticos, a verdade raramente é translúcida. Há as meias verdades – louvar uma pessoa ou um fato, ignorando sua outra face; a apreciação errônea de fatos ou atitudes – errar é humano – a memória seletiva – fulano foi acusado de…, omitindo que foi absolvido – etc. Giovanni Sartori, no livro Homo videns, o aponta lembrando que para tanto basta selecionar o que se divulga do que não se divulga, ou dando destaque a um ponto no título da notícia que se publica, quando não fizer dizer coisa diferente do que narra.

Haverá algum meio de comunicação de massa que não tenha incidido nesses pecados? (Ao que nunca o fez peço desculpas pela erronia).

A propaganda e a verdade das informações.

Ademais – cabe lembrar – que a propaganda (e hoje não se faz política sem propaganda, por ser  por ser esta o modo de divulgação da pessoa dos candidatos e de seus programas, não se faz no respeito absoluto da verdade. Ela obviamente nunca é neutra, pois se fosse não seria propaganda. Afinal ela visa a “vender” um produto. Para tal louva as qualidades desse produto, jamais aponta-lhe os defeitos ou efeitos colaterais daninhos. Ao fazê-lo, não se dirige à razão humana, mas aos sentimentos, às paixões ao inconsciente do ser humano. Ela não “mente”, não gera “ódio”?

Num certo aspecto, as fake News – exceto quando são criminosas – se enquadram entre os recursos usuais da propaganda. Se elas devem ser proscritas da política, também o deve ser a propaganda enganosa, como a das promessas impossíveis, das propostas que não se pretendem executar, etc. (Com a decorrência lógica da punição fizeram tais promessas ou propostas – fidelidade não ao partido, mas à palavra empenhada). Se as fake news levam a decisões eleitorais errôneas, a propaganda também incorre no mesmo pecado.

Senão, por que eventualmente o povo bem intencionado “erra” ao votar? Porque não vota segundo desejam os “instruídos”, os intelectuais, pois, também estes erram, a ponto de terem de pedir seja esquecido o que pregaram. E nem sempre inocentemente, como os que louvaram o estalinismo, o fascismo, o nazismo.

Como coibir as notícias falsas na política?

Em termos práticos – conclua-se – como coibir a propaganda enganosa, incluídas as fake News, sem estabelecer a censura?

E aqui se põe a quadratura do círculo: como estabelecer censura sem violar a liberdade de expressão do pensamento, reflexo inexorável da liberdade de crença, esta inerente à liberdade de pensamento, esta conatural à pretensão humana de ser um animal racional. Como essas liberdades estão consagradas na Constituição (arts. 5º, VI, IX, 220, § 2º) seria isso inconstitucional (o que não preocupará muito guardiões que se confundem com constituintes).

Igualmente, como estabelecer a censura, sem ter certeza de que os censores são sempre sábios, não têm crenças na consciência e por isso não terão qualquer viés na apreciação.

E por último: como estabelecer a censura sem que o Estado defina a “verdade” como os totalitários o fizeram?

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho –  Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

 

 

SP 23/06/2020

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