O vírus e os juros. Por Alexandre Schwartsman
O VÍRUS E OS JUROS
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
A epidemia global mudou o cenário econômico e as perspectivas de taxas de juros, mesmo com restrições à sua efetividade. No Brasil deve se traduzir em afrouxamento adicional das condições financeiras.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO INFOMONEY, EDIÇÃO DE 4 DE MARÇO DE 2020
Segundo a tradição judaica o feto não é considerado viável até se formar em medicina (discute-se no Talmud se tocar violino como o Itzhak Perlman também tem esta propriedade, mas divago…). Já no meu caso, o mais próximo que posso chegar a esse estágio é pela discussão sobre o impacto do coronavírus na economia global em geral e no Brasil em particular.
Houve uma mudança radical quanto às expectativas sobre a política monetária nos EUA, expressa na probabilidade que mercados de renda fixa atribuem a cada possível decisão do Federal Reserve sobre a taxa de juros (a Fed Funds rate, ou FF). Até a semana passada os futuros de taxa de juros revelavam quase certeza (perto de 80% de chance) de manutenção da meta da FF no patamar atual (1,75% ao ano no máximo); já hoje este mesmo mercado apreça probabilidade de 100% de redução para um nível máximo de 1,25%, isto é, corte de 50 pontos-base na reunião do dia 18/março, seguida de novo corte em abril para 1,00% ao ano.
Em linha com esse desenvolvimento, a taxa de juros de 10 anos nos EUA se encontra agora próxima a 1,1% ao ano, contra 1,7% ao ano há cerca de um mês. Mercados de renda fixa, portanto, voltaram a se preocupar com um cenário de recessão, esperando que o Federal Reserve reaja de acordo, isto é, reduzindo de forma tão agressiva quanto possível as taxas de juros de curto, notando, é claro, que o espaço para isto não é tão grande. Resta saber se tal reação será, ou não, eficaz.
A resposta depende crucialmente da identificação da natureza do choque a que foi submetida a economia: trata-se de um problema de insuficiência de demanda, ou de restrições de oferta? Como sempre, a resposta é difícil.
Não há dúvida que muitos dos problemas enfrentados no momento pela economia americana apresentam características de restrições de oferta. Há muitos anos as empresas americanas estenderam suas cadeias de suprimentos para fora do país, com forte ênfase na China, o epicentro da epidemia. Além disso, graças à modernização da logística, também reduziram significativamente o nível de estoques de partes e componentes, operando de forma “just in time” para reduzir custos.
A produção chinesa, todavia, sofreu um baque sem precedentes. Embora eu tenha cá minhas restrições aos Índices de Gerentes de Compras (PMI, na sigla inglesa), a informação que vem da China não pode ser ignorada. Tais índices definem a medida 50 como estabilidade, de modo que leituras acima de 50 indicam expansão e contração abaixo desse nível.
Pois bem, em fevereiro o PMI da indústria chinesa registrou 37,5 (contra 50 em janeiro), simplesmente o mais baixo desde o início da série em 2005, inferior inclusive à marca observada no auge da crise financeira (38,8 em novembro de 2008). Há receio que, pela primeira vez desde a Revolução Cultural, o PIB trimestral possa se contrair. Aparentemente só um vírus altamente contagioso conseguiu fazer o mesmo estrago na economia chinesa que as políticas de Mao Tsé-Tung.
Com isso, foram rompidas várias cadeias de suprimentos: há relatos, por exemplo, que a Apple teria que adiar o lançamento do novo modelo do iPhone devido a problemas com as fabricas da FoxConn na China. Tal efeito não se limita a uma única empresa ou mesmo país, dado que a China responde hoje por cerca de 12% das exportações globais e perto de 6% do produto industrial mundial.
Contra esse fenômeno a redução de taxa de juros terá pouca, se alguma, eficácia. Juros mais baixos não recomporão as cadeias de suprimentos, nem farão os trabalhadores chineses retornarem ao trabalho sem receio da epidemia.
Fosse esse, portanto, o único motivo de receio para a recessão global, não haveria porque imaginar qualquer papel para os bancos centrais e a política monetária. No entanto, não é o caso.
A epidemia trouxe um aumento brutal de incerteza, incluindo a sobrevivência de cada um. Já nós, como espécie, somos evolucionariamente mal adaptados para lidar com incerteza: o australopiteco que, ao ouvir um ruído de galho seco na savana, ficou fazendo contas para ver se valia a pena ainda procurar pelo alimento ao invés de fugir a toda velocidade provavelmente virou comida de leopardo sem deixar descendentes.
Quando o atual predador, no caso o coronavírus, ataca, nossa resposta programada é deixar que o medo prevaleça sobre a cobiça. Assim, bolsas mundiais despencam, talvez mais do que seria de se esperar em face de restrições de oferta que, embora severas, podem ter duração reduzida na comparação com o horizonte no qual empresas operam.
As implicações da queda dos preços das ações alcançam muito além dos eventuais especuladores. Seus detentores se tornam mais pobres, reduzindo gastos com consumo; empresas veem seu custo de capital (que se relaciona de maneira inversa ao preço das ações) aumentar, diminuindo o apetite por investimento.
Menores taxas de juros amenizam, em algum grau, tais desenvolvimentos e podem, portanto, mitigar os riscos de recessão. Posto de outra forma, há espaço para ação dos bancos centrais, embora limitado ao lado da demanda; não resolverão o problema, mas provavelmente será melhor ter a reação de política monetária no que não a ter.
Especificamente no caso do Brasil, espero que o componente de demanda seja mais relevante que o de oferta. Em que pesem os relatos de falta de componentes para a indústria nacional, levando inclusive a férias coletivas, o principal efeito sobre o país deve se dar pela queda dos preços internacionais de commodities. Tomando preços médios (em dólares) de fevereiro, observamos redução na casa de 5% do complexo soja, 8,5% do minério de ferro e por volta de 13% no caso do petróleo, notando que esses produtos representam praticamente 40% das exportações nacionais.
É verdade que a depreciação da moeda permite que nem todo o impacto seja transmitido diretamente ao produtor, mas, ainda assim, falamos de piora visível das relações de troca (preços exportação versus preços de importação), cujo efeito costuma deprimir a atividade.
Há, por certo, discussão relevante sobre possíveis efeitos sobre a inflação associadas ao enfraquecimento do real, mas o consenso que parece se formar – e do qual faço parte – sugere que a recuperação ainda modesta e a queda dos preços de commodities devam limitar o potencial inflacionário. De fato, a expectativa de inflação para 2020 segue em queda e há sinais incipientes de redução das expectativas referentes a 2021 também.
Em tal contexto, é natural que volte também ao debate a possibilidade de redução da Selic. Apesar do alerta do BC no mês passado, a mudança das condições internacionais deve levar a uma discussão mais intensa no comitê. De qualquer forma, mesmo que não se materialize agora novo corte da Selic, sua estabilidade deve perdurar mais do que esperado antes dos últimos desenvolvimentos, o que traduz em queda nas taxas de juros no horizonte dos próximos dois anos, sem, é claro, eliminar a possibilidade de novo afrouxamento monetário caso fique claro que o cenário de epidemia tende a reduzir adicionalmente a inflação.
Será que o Talmud abre exceção para economistas?
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