General iraniano morto em ataque americano era burro e superestimado. Por Thomas L. Friedman
GENERAL IRANIANO MORTO EM ATAQUE AMERICANO ERA BURRO E SUPERESTIMADO
THOMAS L. FRIEDMAN
Qassim Suleimani, considerado herói por muitos no Irã, lançou um projeto imperial regional agressivo
PUBLICADO ORIGINALMENTE NA FOLHA DE S. PAULO, EDIÇÃO DE 5 DE JANEIRO DE 2020 - (FONTE: THE NEW YORK TIMES)
Um dia, talvez batizem uma rua de Teerã em homenagem ao presidente dos EUA, Donald Trump. Por quê? Porque Trump acabou de ordenar o assassinato do homem que era possivelmente o mais burro do Irã e o estrategista mais superestimado do Oriente Médio: o major-general Qassim Suleimani.
Pense nos erros de cálculo que esse cara fez. Em 2015, os EUA e as principais potências europeias concordaram em suspender praticamente todas as suas sanções contra o Irã, muitas delas em vigor desde 1979, em troca de o Irã interromper seu programa de armas nucleares por meros 15 anos, mantendo o direito a um programa nuclear pacífico.
Foi um grande negócio para o Irã, que viu sua economia crescer mais de 12% no ano seguinte. E o que Suleimani fez com esse golpe de sorte?
Ele e o líder supremo do Irã lançaram um projeto imperial regional agressivo que tornou o Irã e seus representantes o poder controlador de fato em Beirute, Damasco, Bagdá e Saná. Isso assustou os aliados dos EUA no mundo árabe sunita e Israel, que pressionaram o governo Trump por uma resposta.
O presidente americano, ansioso para rasgar qualquer tratado concebido durante o governo Obama, deixou o acordo nuclear e impôs sanções ao petróleo do Irã, o que levou ao encolhimento da economia iraniana em quase 10% e a desemprego para mais de 16% da população.
Tudo isso pelo prazer de dizer que Teerã pode dar as ordens em Beirute, Damasco, Bagdá e Saná. Qual exatamente foi o segundo prêmio?
Ao privar severamente de fundos o regime de Teerã, os aiatolás tiveram que aumentar os preços da gasolina em casa, provocando maciços protestos domésticos. Isso exigiu uma severa repressão dos clérigos do Irã contra seu próprio povo, que deixou milhares presos e mortos, enfraquecendo ainda mais a legitimidade do regime.
Então, o “gênio militar” Suleimani decidiu que, depois de apoiar o regime do presidente Bashar al-Assad na Síria e ajudar a matar 500 mil sírios no processo, ele exageraria novamente e tentaria pressionar diretamente Israel. Faria isso tentando transferir foguetes teleguiados de precisão do Irã para grupos ligados às forças iranianas no Líbano e na Síria.
Suleimani descobriu que combater Israel —especificamente, suas forças aérea, especiais, de inteligência e cibernéticas combinadas— não é como combater a frente Nusra ou o grupo Estado Islâmico. Os israelenses reagiram duramente, enviando um monte de iranianos da Síria para casa em caixões e empurrando os grupos ligados ao Irã até o oeste do Iraque.
De fato, a inteligência israelense havia penetrado tanto na Força Quds, de Suleimani, e em grupos aliados que Suleimani pousaria um avião com munições de precisão na Síria às 17h, e a Força Aérea de Israel o explodiria às 17h30. Os homens de Suleimani eram alvos muito fáceis. Se o Irã tivesse uma imprensa livre e um Parlamento real, ele teria sido demitido por colossais erros administrativos.
Mas a coisa melhora, ou piora, na verdade, para Suleimani. Muitos de seus obituários dizem que ele liderou a luta contra o grupo Estado Islâmico no Iraque, em aliança tácita com os EUA. Bem, isso é verdade. Mas o que eles omitem é que o alcance excessivo de Suleimani, e do Irã, no Iraque ajudou a produzir o grupo Estado Islâmico, em primeiro lugar.
Foram Suleimani e seus amigos da Força Quds que pressionaram o primeiro-ministro xiita do Iraque, Nouri al-Maliki, a expulsar os sunitas do governo e do exército iraquianos, parar de pagar salários a soldados sunitas, matar e prender um grande número de manifestantes pacíficos sunitas e, em geral, transformar o Iraque em um Estado sectário dominado por xiitas. O grupo Estado Islâmico foi a contrarreação.
Finalmente, foi o projeto de Suleimani de tornar o Irã a potência imperial no Oriente Médio que transformou o Irã no poder mais odiado do Oriente Médio para muitas das forças jovens pró-democracia em ascensão —sunitas e xiitas— no Líbano, na Síria e no Iraque.
Como apontou o estudioso iraniano-americano Ray Takeyh em um inteligente ensaio no site Politico, nos últimos anos “Suleimani começou a expandir as fronteiras imperiais do Irã. Pela primeira vez em sua história, o Irã se tornou uma verdadeira potência regional, ampliando sua influência das margens do Mediterrâneo ao golfo Pérsico. Suleimani entendeu que os persas não estariam dispostos a morrer em campos de batalha distantes pelo bem dos árabes, então ele se concentrou em recrutar árabes e afegãos como uma força auxiliar. Ele costumava se gabar de poder criar uma milícia em pouco tempo e mobilizá-la contra os vários inimigos do Irã”.
Foram exatamente esses representantes de Suleimani —o Hizbollah no Líbano e na Síria, as Forças de Mobilização Popular no Iraque e os houthis no Iêmen— que criaram Estados xiitas pró-iranianos em todos esses países.
E foram precisamente esses Estados dentro de Estados que ajudaram a impedir a coerência em qualquer desses países, promoveram a corrupção maciça e impediram que esses países desenvolvessem infraestrutura —escolas, estradas, eletricidade.
E, portanto, foram Suleimani e seus procuradores —seus “fazedores de reis” no Líbano, Síria e Iraque— que cada vez mais foram considerados, e odiados, poderes imperiais na região, ainda mais que os Estados Unidos de Trump.
…o oposto de “ruim” não é “bom”. O oposto de ruim muitas vezes acaba sendo “desordem”. Só porque você elimina um ator realmente ruim como Suleimani não significa que um bom ator, ou uma boa mudança na política, ocorrerá em seu rastro…
Isso desencadeou movimentos democráticos populares, autênticos e de baixo para cima no Líbano e no Iraque, que envolveram uma união entre sunitas e xiitas para exigir uma governança democrática incorrupta e não-sectária.
Em 27 de novembro, xiitas iraquianos —sim, xiitas iraquianos— queimaram o consulado iraniano em Najaf, no Iraque, retirando a bandeira iraniana do prédio e colocando uma bandeira iraquiana em seu lugar. Isso ocorreu depois que os xiitas iraquianos, em setembro de 2018, incendiaram o consulado iraniano em Basra, gritando condenações pela interferência do Irã na política iraquiana.
Todo o “protesto” contra o complexo da embaixada dos EUA em Bagdá na semana passada foi quase certamente uma operação organizada por Suleimani para parecer que os iraquianos queriam os EUA fora, quando na verdade era o contrário. Os manifestantes eram milicianos pagos pró-Irã. Ninguém em Bagdá foi enganado sobre isso.
De certa forma, foi o que matou Suleimani. Ele queria tanto encobrir seus fracassos no Iraque que decidiu começar a provocar os americanos lá bombardeando suas forças, esperando que reagissem exageradamente e matassem iraquianos, lançando-os contra os Estados Unidos. Trump, em vez de morder a isca, matou Suleimani.
Não tenho ideia se isso foi sensato ou sobre quais serão as implicações em longo prazo. Mas aqui estão duas coisas que eu sei sobre o Oriente Médio.
Primeiro, muitas vezes no Oriente Médio o oposto de “ruim” não é “bom”. O oposto de ruim muitas vezes acaba sendo “desordem”. Só porque você elimina um ator realmente ruim como Suleimani não significa que um bom ator, ou uma boa mudança na política, ocorrerá em seu rastro.
Suleimani faz parte de um sistema chamado Revolução Islâmica no Irã. Essa revolução conseguiu usar o dinheiro do petróleo e a violência para permanecer no poder desde 1979 —e essa é a tragédia do Irã, uma tragédia que a morte de um general iraniano não mudará.
O Irã de hoje é o herdeiro de uma grande civilização e o lar de um povo enormemente talentoso e de uma cultura significativa. Onde quer que os iranianos estejam no mundo hoje, eles prosperam como cientistas, médicos, artistas, escritores e cineastas —exceto na República Islâmica do Irã, cujas exportações mais famosas são os líderes de ataques suicidas, ciberterrorismo e milícias por procuração.
O simples fato de Suleimani ser provavelmente o iraniano mais famoso da região fala sobre o vazio absoluto desse regime e como ele desperdiçou a vida de duas gerações de iranianos, procurando dignidade em todos os lugares errados e de maneiras erradas.
A outra coisa que sei é que no Oriente Médio toda política importante acontece na manhã seguinte à manhã seguinte.
Sim, nos próximos dias haverá protestos barulhentos no Irã, queima de bandeiras americanas e muito choro pelo “mártir”.
E a manhã depois de amanhã? Haverá mil conversas silenciosas dentro do Irã que não serão relatadas. Elas tratarão da farsa que é seu próprio governo e como ele desperdiçou grande parte da riqueza e do talento do Irã em um projeto imperial que fez o país ser odiado no Oriente Médio.
E sim, na manhã seguinte, os aliados árabes sunitas dos EUA celebrarão silenciosamente a morte de Suleimani, mas nunca devemos esquecer que é a disfunção de muitos dos regimes árabes sunitas —sua falta de liberdade, de educação moderna e empoderamento das mulheres— que os tornou tão fracos que o Irã conseguiu dominá-los por dentro com seus representantes.
Escrevo estas linhas enquanto sobrevoamos a Nova Zelândia, onde a fumaça de incêndios florestais a 4.000 quilômetros de distância, no leste da Austrália, pode ser vista e sentida. A Mãe Natureza não sabe o nome de Suleimani, mas todos no mundo árabe saberão o nome dela. Porque o Oriente Médio, particularmente o Irã, está se tornando uma área de desastre ambiental —ficando sem água, com crescentes desertificação e superpopulação.
Se os governos não pararem de lutar e se unirem para criar resiliência contra a mudança climática —em vez de celebrar fraudes militares autopromocionais que conquistam Estados falidos e os fazem falir ainda mais—, todos estarão condenados.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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Thomas L. Friedman – Jornalista, especializado em Relações Internacionais. Colunista do The New York Times