Lendas Urbanas: a morte do goleirão. Blog do Mário Marinho
LENDAS URBANAS
A MORTE DO GOLEIRÃO
BLOG DO MÁRIO MARINHO
Eu tinha uns seis anos de idade, o que remete esta história a um monte décadas passadas.
No meu bairro, em Belo Horizonte, o Parque Riachuelo, eu ficava espremido entre os bairros Senhor Bom Jesus e Aparecida, havia um time de futebol com o nome do bairro: Parque Riachuelo FC.
Seu campo, de terra batida, ficava na rua Madureira, nas imediações da rua Dona Clara, a uns 500 metros da minha casa.
Nas tardes de domingo, meu pai me levava para assistir aos jogos.
O Parque era um time brioso, valente e, quando necessário, brigão. Dificilmente perdia jogos em seu campo.
Dois jogadores ficaram na minha lembrança: o goleiro Cueca e o zagueiro Neném Traíra.
Cueca era um goleiro fantástico: magro, alto, ágil e ousado. Todas as qualidades que um bom goleiro deveria ter.
O apelido Traíra dado a Neném (cujo nome verdadeiro eu nunca soube) não tem nada a ver com o sentido em que a palavra é empregada hoje, principalmente entre boleiros.
Hoje, traíra quer dizer traidor.
Neném levava o apelido porque gostava muito de pescar, principalmente traíras que volta e meia ele levava aos botequins para tira-gosto com os amigos.
Ele é o personagem desta história.
Neném Traíra não era muito alto e tinha pronunciada barriga. Mas era um zagueiro eficiente que empregava a filosofia “a bola passa, mas o adversário não”, para ganhar todas as disputas.
Além dessa qualidade altamente louvável nos zagueiros da várzea, Neném Traíra tinha outra: o chute.
E não era um chute qualquer: era de bico.
A reposição de bola do zagueirão ao cobrar um tiro de meta era quase uma falta perigosa contra o goleiro adversário.
Falta, então, nas imediações da área adversária, arrancava gritos, aplausos e frenesis da torcida quando via o gordo zagueiro empurrando a pança em direção do local da falta.
Os jogadores adversários que já conheciam a fama do chute de bico do zagueiro se recusavam a ficar na barreira.
Pois foi num domingo daqueles que eu, criança, ouvi a história de Neném Traíra, triste e comovente história.
Contava-se que num determinado jogo, Neném se viu enfrentando o próprio irmão que era goleiro adversário.
Pois eis que em determinado momento do jogo, o juiz apita pênalti a favor do Parque Riachuelo.
E lá se foi Neném cobrar.
Sabedor da ignorância e da força de seu chute, Neném, antes de colocar a bola na marca fatal, foi até o irmão e disse:
– É melhor você sair do gol.
– De jeito nenhum, não saio mesmo, retrucou o indignado irmão.
– Então, você não vai na bola. Você conhece o meu chute. Você pode até morrer.
– Eu morro, mas morro cumprindo o meu dever, respondeu o heroico irmão.
Neném tomou a costumeira e longa distância. Partiu para a bola e soltou aquele bicudo com a violência que só ele sabia.
O irmão, que era excelente goleiro, foi para a bola e agarrou com firmeza. Permanecendo alguns segundos agarrado com ela.
Neném se surpreendeu com a façanha do irmão e foi cumprimentá-lo.
Quando tocou em seu ombro, o goleiro rolou para o lado, ainda segurando a bola, mas com os olhos já embaçados.
O goleiro estava morto. A pancada do chute havia sido forte demais.
Eu quase cheguei às lágrimas quando ouvi aquela história que, durante anos, me acompanhou e me cortava o coração.
Sempre que chegava ao campo do Parque levado pelas mãos seguras e carinhosas do meu saudoso pai, eu via o Neném em campo e começava a imaginar a dor que ele sentiu com a morte do irmão.
E ficava me perguntando: como é que ele ainda joga futebol? Será que não tem medo de matar outra pessoa?
O tempo passou, o time do Parque acabou, seu campo foi ocupado por várias moradias e até mesmo eu me mudei para São Paulo.
Pois, numa madrugada, no bar e restaurante Picardia, onde a turma do Jornal da Tarde se reunia nas madrugadas após o fechamento da gloriosa e com certeza criativa edição do dia do JT, entre cervejas e muitos casos, o companheiro Fernando Mitre contou a mesma história.
Só que ela se passou em Oliveira, onde Mitre nasceu e os personagens eram outros, mantendo-se fielmente o mesmo enredo: os irmãos, o goleiro, o zagueiro de chute violento e até a frase dramática e heroica: “Morro, mas, morro cumprindo o meu dever”.
A história que tanto me fez sofrer na infância era apenas e tão somente uma lenda urbana.
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Mário Marinho – É jornalista. É mineiro. Especializado em jornalismo esportivo, foi durante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, além de participação em inúmeros livros e revistas do setor esportivo.
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Olá !
Graças a Deus que era uma lenda pois , eu já estava aqui a pensar a mesma coisa que vc ..
Como esse cara ainda joga bola ?
Uff , que alívio !